Toreador

Não é difícil perceber a razão pela qual se insere, aqui, uma das mais famosas árias do panorama operático --- https://www.youtube.com/watch?v=fOxDzDyLEMQ

terça-feira, 24 de julho de 2012

NVLLA POENA SINE IVDICIO


Assim devia ser, mas nem sempre é.
O que abaixo segue é tão desconforme à moral, ao direito, à lógica e até ao mais elementar senso comum, que se não é um caso insólito, pelo menos há-de ser raríssimo E se me engano nesta previsão, então a Magistratura Portuguesa está muito pior do que se diz e eu próprio imaginava.
Só de uma mente e vontade sobre as quais prefiro não me pronunciar, só delas, repito, pode sair desconchavo semelhante ao que vou narrar. A sua autora é a M.ma Juíza de Direito, exercendo funções no 4.º Juízo Criminal da Vara de Competência Mista e Juízos Criminais de Coimbra. E o processo, de que trato aqui, leva o n.º 404/09.3TARGR.
Nele, o condenado fui eu!


O título convida a esta interrogação: mas foi decretada alguma pena sem que eu fosse julgado? 

A pergunta envolve dois aspectos, pelo que a resposta também se há-de desdobrar. E assim temos que houve pena, embora ainda não transitada em julgado (1). Quanto ao resto, direi que o que se passou naquele Tribunal não merece o nome de julgamento: foi uma execução sumária, que nem sequer vale um número de circo, porque muitas vezes os palhaços têm a sua graça.
 
Com efeito, criminoso é todo aquele que foi condenado pela prática de um facto que a lei prevê e pune como crime. Mas para ser julgado, tratando-se de crime público, como é o caso de que aqui dou notícia, tem de haver antes um impulso do MP contra o agente do facto punível, requerendo que ele seja presente a juízo. E essa promoção só tem lugar contra a pessoa do arguido.

Ora ninguém nasce arguido: tem de ser constituído como tal, quando é ocasião. E então depois já está em condições de enfrentar uma acção penal.

Não o entendeu assim a M.ma Juíza de Direito e, por isso, não hesitou em condenar-me pela prática de um alegado crime, do qual não chegaram a constituir-me arguido.

Por conseguinte, nenhum inquérito se realizou, vício que gera nulidade insanável, do número daquelas «que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, (...)» (CPP art. 119.º, al. d). A este conhecimento ex officio, juntei a minha voz nos autos (fls. 70 e s.) e na própria audiência de julgamento. Sobre isto, a Ex.ma Magistrada não emitiu qualquer juízo. Ignorou, pois, o que por lei era obrigada a conhecer; e fez orelhas moucas ao que eu aleguei na contestação e disse no julgamento. A culpa disto cabe-lhe por inteiro e a conclusão a tirar é que prevaricou duplamente.

E qual foi o alegado crime em que a M.ma Juíza me condenou, não obstante a flagrante nulidade já assinalada? Nem mais, nem menos que um do mesmo tipo legal, por cuja prática me absolvera oito meses antes. 

Há provas? Estão na sentença que ela então proferiu e de que se extraem as passagens  que importam à demonstração:


Proc. n.º 475/09.2TARGR
 

(...).


FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Da audiência de discussão e julgamento resultou como provada a seguinte matéria:

  1. Nos dias 25 de Janeiro de 2008 e 4 de Março de 2010, na Esquadra de Investigação Criminal, em Coimbra, no âmbito dos Inquéritos n.º 1112/07.5TAPDL e 475/09.2TARGR, o arguido prestou declarações na qualidade de arguido.
  2. Nas duas ocasiões foi advertido pelos agentes policiais que procediam aos interrogatórios de que a falta, ou a falsidade, de resposta sobre os seus antecedentes criminais o faria incorrer em responsabilidade penal.
  3. Não obstante tal advertência, o arguido, em 25 de Janeiro de 2008 e 4 de Março de 2010, recusou indicar aos agentes que procediam ao interrogatório os seus antecedentes criminais, dizendo que não respondia a tal pergunta por considerar inconstitucional a norma que o obriga a responder aos seus antecedentes criminais.

(...).

****

FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA PROVADA
 

Os factos dados como provados assentam, essencialmente, das declarações do arguido que admitiu que os mesmos eram verdadeiros, na certidão junta aos autos a fls. 1 a 25, do teor de fls. 35 e certificado de registo criminal de fls. 42 a 44. 

Consideramos como não provados os demais factos, por o arguido ter explicado por que razão defende que a norma que obriga a que os arguidos respondam quanto aos seus antecedentes criminais é inconstitucional. Além disso, o próprio tribunal considera que a conduta descrita não integra a prática de um crime, pelo que nunca poderia ser dado como provado que o arguido sabia que praticava actos criminalmente puníveis.

(...).

Resta tão só esclarecer que a conduta do arguido descrita na acusação também não integra o crime de desobediência, pp. no artigo 348.° do Código Penal, pois não estabelecendo a lei processual penal a cominação pelo crime de desobediência para o arguido que recuse responder aos seus antecedentes criminais, era necessário que o arguido tivesse sido advertido que incorria em crime de desobediência - artigo 348.°, n.º 1, alínea b) do Código Penal. Com efeito, não basta advertir o arguido que, a recusa, o faz incorrer em responsabilidade criminal, é necessário que ele tome conhecimento do concreto crime em que incorre, ou seja, que comete um crime de desobediência - neste sentido, entre outros, AC. R. G. de 10.01.2005, e Ac. R. P. de 03.12.2003, in www.dgsi.pt.
 
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DISPOSITIVO

Face a todo o anteriormente exposto, absolvo o arguido Joaquim Maria Botelho de Sousa Cymbron dos crimes por que vinha acusado.  

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 Sem custas.


Notifique e proceda a depósito.

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(Processado em computador e integralmente revisto pela signatária - artigo 94.°, n.º 2 do Código de Processo Penal).

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Coimbra, 12 de Abril de 2011
 
Penso que basta. Absolve-me, neste processo, porque aceita as razões que me levaram a não responder à pergunta sobre os antecedentes criminais; além disso, considera que nem chegou a haver desobediência por falta dos elementos constitutivos daquele tipo legal de crime; e remete para jurisprudência de tribunais superiores que sustentam o mesmo que foi decidido por ela quanto a mim.

Uns meses mais tarde, foi o que se viu!

 
Joaquim Maria Cymbron

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  1. Subiu à Relação e ali perdi. Para lá do dissabor que sempre é perder um recurso, o mais chocante foi o argumento usado naquele Tribunal (fls. 540 e s.), para afastar a invocada nulidade insanável, que serviu de cabeçalho a esta peça do blogue. O curso do raciocínio --- se assim se lhe pode chamar --- seguido pelo acórdão da Relação levou-me a felicitar os seus autores.

JMC