Toreador

Não é difícil perceber a razão pela qual se insere, aqui, uma das mais famosas árias do panorama operático --- https://www.youtube.com/watch?v=fOxDzDyLEMQ

segunda-feira, 11 de março de 2013

A LIÇÃO DO TERREIRO DO PAÇO





Qualquer casa, desde que tenha espaço suficiente, guarda sempre um recanto a que os donos dedicam especial cuidado, e se esmeram por lhe dar um aspecto mais convidativo do que ao restante da habitação.
A nossa capital construiu o Terreiro do Paço em priscas eras e reergueu-o dos escombros de um terramoto; enfeitou-o; e ali  tem o seu salão nobre. Quanto a mim, foi escolha acertada.
É associado ao poder político. Falar do Terreiro do Paço soa a mando. Embora não se verifique, nos dias que correm, uma correspondência absoluta entre os dois, o facto é que a inércia da linguagem pesa alguma coisa e a assimilação continua. Convenhamos que não é inapropriada, pois o Estado continua bem representado naquele lugar.
Alguns chamam-lhe Praça do Comércio. Sempre preferi a designação histórica. Mas hoje é mesmo a Praça do Comércio, porque é reflexo de comércio no pior sentido da palavra, comércio da falta de honra e de pudor, comércio de carne humana como é espelho fiel a que se estende no chão e se torna visível na imagem que encima este texto.
 
E a infâmia não é só dos políticos. Debaixo destas mesmas arcadas, abre-se a porta para o mais alto expoente de um órgão de soberania --- o Supremo Tribunal de Justiça. De Justiça, tem pelo menos o nome; se o merece ou não, que o diga gente como os incontáveis desgraçados que se arrastam pelas ruas sobrevivendo do jeito que a imagem mostra. Os outros tribunais não se afastam deste padrão, e consequentemente transportam idêntico grau de responsabilidade que só admite gradação em função da hierarquia de cada um.
 
Todos os deserdados da fortuna, que tiveram de procurar leito em cima daquelas frias lajes, terão a sua história. Naquele sítio e em tantos outros parecidos, onde o infortúnio se repete. A causa desta miséria não será igual em todos, mas uma coisa é certa: alguns quadros como este têm origem em decisões judiciais que por vezes não passam de clamorosos erros de direito, e  que noutros casos, nada raros, foram ditadas por um propósito criminoso. Contudo, pelos crimes previstos e punidos no artigo 369.º do Código Penal, não se conhece nos anais judiciários uma única condenação!
 
Sei, por experiência própria, para onde nos pode atirar o desconcerto dos tribunais. Trago no corpo e na alma, cicatrizes profundas desse desvairo.
 
Por ora, os magistrados denunciados pela prática dos crimes de prevaricação ou de denegação de justiça nada sofreram, porque (assim considera quem os julga) agiram sem consciência de que procediam contra a lei. É jurisprudência constante. Saber que a nossa fazenda, a nossa liberdade ou a nossa honra estão nas mãos de inconscientes não é mais tranquilizador do que se nos atirassem para um covil de malfeitores ou nos deixassem nas garras afiadas de ferozes animais.
 
Na judicatura, a incompetência pode até ser mais perigosa do que a malícia. Assim como não há santo que nunca peque, também não se conhece malvado que não seja tocado por uns momentos de bondade. Pelo que o julgamento levado a cabo por um magistrado imoral pode ser justo, quando as partes tiveram a sorte de se cruzarem com ele numa das suas horas de graça; em contrapartida, só um produto do acaso permitirá que de magistrado inepto brote uma decisão recta.
 
Portanto, o mínimo que se espera é um padrão de responsabilidade. Se alguém há desta casta de impecáveis que não tenha consciência de que viola a lei, quando lavra despacho ou sentença em manifesta contradição ao que estipula o direito, esse magistrado que se retire ou demitam-no; e se age maldosamente, que seja punido conforme o estabelecido no Código Penal. Com isto, só sairia reforçado o prestígio da Justiça.
 
Estando enferma toda a sociedade portuguesa, o nexo causa – efeito deste morbo colectivo não se estabelece numa única relação linear e com um só sentido: a acção é múltipla, complexa e recíproca. Há contudo três cancros que nos roem de forma mais letal: a Comunicação Social, canal bestificante; a Banca, fonte inesgotável de corrupção e mistificação; vêm por fim os magistrados, esquecidos do espírito que anima a nobilíssima função que são chamados a exercer. Por definição, os tribunais constituem a garantia das liberdades consagradas na ordem jurídica. Desta maneira, são o derradeiro paládio antes do recurso à força, solução indesejável, mas a que não se consegue fugir quando um povo quer continuar o seu caminho.
 
O poder judicial é a jóia da soberania e como tal devia luzir. Pedir que os tribunais brilhem, não é portanto pedir demais. Infelizmente, eu entendo, pelas razões já invocadas, que eles se transformaram nos principais culpados da anomia que alastra. E, claro, à sombra dessa anomia vai crescendo a miséria de que é expressivo argumento o que o Terreiro do Paço nos revela.
 
Dantes podíamos afirmar com fundamento: há magistrados que não dignificam a beca que envergam; hoje, a honestidade impõe que se diga: há magistrados que são íntegros. A diferença é só uma, mas imensa como a distância que vai da honradez à venalidade!

Joaquim Maria Cymbron