Toreador

Não é difícil perceber a razão pela qual se insere, aqui, uma das mais famosas árias do panorama operático --- https://www.youtube.com/watch?v=fOxDzDyLEMQ

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

DESCALABRO COMPLETO


P. 255/14.3 TAPDL
Comarca dos Açores
Instância Central
1 Secção - J 3
M. mo Juiz de Direito:
JOAQUIM MARIA BOTELHO DE SOUSA CYMBRON, com os demais sinais dos autos, vem dizer: 
 

Este processo é uma sucessão de arbitrariedades e desconchavos.

 
COM EFEITO:
  • acusão do MP contém segmentos que só numa imaginação febricitante podem encontrar explicação.
  • Eso truncados, deturpando por completo a realidade vivida.
  • De resto, nem admira muito que assim seja, visto que o CD que devia conter o registo gravado da audiência de julgamento, onde ocorreram os factos pelos quais responde o arguido, está praticamente imperceptível.
  • O que além de provocar os já assinalados erros da acusação, impediu o arguido de preparar a sua defesa.
  • A isto sucede que o arguido, bem a tempo, requereu a constituição de tribunal de júri (fls. 32 dos autos).
  • Sobre este requerimento, não recaiu despacho de deferimento nem de indeferimento.
  • Em seu lugar, forma-se tribunal colectivo para julgar o arguido.
  • É manifestamente um novo desmando.
  • Noutro momento, o arguido, valendo-se de um direito que lhe assiste, contestou e arrolou testemunhas; pediu que lhe fossem custeadas as despesas de deslocação para estar presente em julgamento; e, por fim, requereu adiamento da audiência.
  • A contestação e o rol de testemunhas foram desatendidas por preclusão do prazo, quando ainda deviam ser admitidas contra pagamento de multa; ignorados ficaram os encargos com a viagem, de forma perfeitamente abstrusa; o adiamento da audiência foi recusado e constitui a única decisão acertada.
  • Ao longo deste miserável percurso, onde estava o Ilustre Advogado nomeado como defensor oficioso do arguido?
  • Naturalmente à espera de cobrar por um serviço tido como medida de protecção aos direitos, liberdades e garantias fundamentais do cidao!

CONCLUINDO:
  • O arguido não duvida que o seu direito de defesa foi ampla e repetidamente violado.
  • Espera que, pelo menos, este Tribunal lhe proporcione os meios de usar da faculdade reconhecida no CPP art. 333.°, n.º 3, o que aqui se requer!

E.D.
 
Joaquim Maria Cymbron

sexta-feira, 11 de abril de 2014

ÀS PORTAS DO CÁRCERE


Estou condenado a passar 18 (dezoito) fins de semana na prisão (1). O último 'crime', que desencadeou este merecidíssimo castigo (é fora de dúvida que sou um celerado incorrigível), vem descrito aqui.


Se Deus quiser, quando findar o dia, volto a transpor os umbrais de uma cadeia. Em Coimbra, cruzava-os para ir às oficinas onde tinha trabalhos encomendados; agora, entro como hóspede no Estabelecimento Prisional de Aveiro.
    
Levo comigo uma forte dose de curiosidade. Sempre quero ver se lá encontro Magistrados a cumprir pena por crime de denegação de justiça e prevaricação. Palpita-me que nem um haverá. E se a busca se estender por outras prisões de Portugal, o resultado não deve alterar-se. É uma casta que se crê impecável, tirando do poder em que foram investidos o fundamento desse falso dogma. Se o mito se esfumasse, quantos escapariam a um juízo de reprovação?

Nunca fui grande admirador do tribunal de júri. Os jurados, no sistema judicial, surgem a meus olhos como leigos que têm de se pronunciar em matéria que não é da competência deles. Não são mais nem menos profanos do que se apresentam quando escolhem quem os governe. E como não dou crédito às falácias da Democracia, a minha desconfiança tem de compreender-se.

No entanto, quando falham os poderes constituídos, alguém do meio do povo acabará por erguer-se e suprir a demissão funcional daqueles órgãos de soberania. Isto, cedo ou tarde, sucede indefectivelmente em todas as épocas e é um direito inauferível da comunidade política. Mais importante que a legitimidade de origem ou de título é a legitimidade de exercício. Cabe, sem dúvida, à Magistratura de carreira a titularidade instrumental da administração da Justiça. Porém, não tem de espantar que os seus abusos levem ao desespero quem os sofre e que os lesados procurem reparação noutro lado. Entretanto, porque as instituições vigentes ainda guardam meios de reagir ao mal, impõe-se o recurso a outra fonte da tão desejada Justiça.

Daí que, recentemente, eu me tenha voltado para o tribunal de júri esperando dele, num julgamento que me aguarda, a isenção a que todos aspiramos.

As leis encontram-se para o corpo social um pouco ao modo como os recursos médicos estão para o corpo de cada um de nós. Assim, têm elas a dupla função de prevenir ou de corrigir os males que podem afectar a vida de uma sociedade, tal como a ciência médica, perante a doença humana, estuda e se serve dos meios que incessantemente se vão aperfeiçoando para a combater, procurando primeiro evitá-la e, se ela vier a declarar-se, tentando curá-la.

Mas se a profilaxia ou a terapêutica falham repetidamente, umas vezes por insuficiência dos tratamentos aplicados, outras porque não eram os mais adequados à patologia evidenciada, que faz o paciente? Certo e sabido que descrê dos serviços de saúde, onde tem sido assistido, e parte em busca de salvação noutro sítio. É isto um insulto à medicina? Nunca! Será muitas das vezes uma tácita e áspera censura a alguns magos daquela profissão, sem qualquer menosprezo por esta. 

O mesmo se passa com o particular que deve obediência às leis. As leis saem no jornal oficial. Para além de actuarem logo de forma dissuasória, é inegável que se reanimam quando há crise na disciplina social. A prova de fogo das leis está, efectivamente, na sua aplicação, tal como sucede no campo da medicina, cuja arte só é verdadeiramente passível de ser apreciada, quando presta os seus cuidados a quem deles necessita.

E mantendo o paralelo com a ciência médica, que não pode sentir-se afrontada se um doente é tomado de cepticismo quanto à competência e virtude das mãos que o maltrataram mais que uma vez, pela razão clara de que não deve confundir-se a parte com o todo, nem o momento que passa com o valor que permanece, resta acrescentar que também não padece a Justiça, quando clamo que me insurjo contra o estilo como são aplicadas as leis, defeito que não está nela, Justiça, mas sim nalguns dos seus pretensos sacerdotes.


Joaquim Maria Cymbron

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  1. Em que ficou a pena? Pois bem: não cumpri um só dia de um qualquer fim de semana.

JMC

domingo, 23 de março de 2014

NAPOLEÃO, O JUIZ


«... Napoleón ha sido la Francia hecha hombre para propagar la idea revolucionaria.» (1) 
O Juiz, a que aludo, não é esse Napoleão. Realizar o que Bonaparte levou a cabo, não está ao alcance do primeiro que resolve puxar a marrafa para a testa. Toda a obra requer arte. Mesmo quando vem trazer a desgraça aos povos, como foi no caso do Tigre da Córsega e que não é o que se passa com o Napoleão, de que trato, a quem falta talento e dimensão. Este, e outros da sua igualha, não deixam obra atrás deles: o mais que vão fazendo, enquanto vivem, são garatujas.
Já disse que o "herói" deste conto não é Napoleão, o guerreiro que assolou a Europa. Mas é Juiz! Será que isso chega para abonar alguma qualidade? Num tempo em que andam, por aí, uns que se enfeitam com esse título, outrora respeitabilíssimo, e que, por pouco, não ascendiam a essa posição através de fraude, temo sinceramente que a resposta a dar só possa ser negativa.
 

Ex.mo Sr. Juiz-Presidente do Tribunal Judicial de X 

M.mo Juiz

As meias, que enviei à M.ma Juíza Dr.ª N. (uma das quais tinha outra destinatária), foram declaradas perdidas a favor do Estado. E ainda se teima em censurar-me por alegar que, no meio da iniquidade, é com frequência que arranjo modo de sacar algo do que parece vir contra mim. Daqui não há saída: ou eu era absolvido e ficava com as meias; ou sofria uma condenação e dizia-lhes adeus. Que mais podia eu ambicionar do que ofertar aquele lindo par ao Estado, esse ente de bem, sempre tão escrupuloso com a fazenda de cada contribuinte?

Mas se é grande a minha satisfação pelo desfecho das meias, assim estou inquieto pela sorte que levou a tenda de campismo, lançada no parque das traseiras desse Tribunal. E acima disto, preocupa-me não saber se a bomba foi desactivada sem perigo.

Com os meus respeitosos cumprimentos,
 

Joaquim Maria Cymbron
 
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1.      Donoso Cortés --- Discurso sobre la dictadura.

 

 JMC

quinta-feira, 13 de março de 2014

A GRANDE OFENSA


V. Ex.ª está satifeita? Eu, não! E nem se prende com a condenação. Condenações, há muito que fazem parte do meu quotidiano.

O que me contraria é a dúvida de não saber se a pretensa ofensa, de que V. Ex.ª se queixou, tem a ver com umas toscas meias, em vez de um bonito conjunto de meias de seda e cinto de ligas. Isso era de realização impossível. São três as razões que o impediram: a primeira, e que é a mais importante, por decoro moral; vem depois o motivo económico, o qual se reconduz a que um presente daquela categoria há-de ser caro e, na algibeira, eu não tenho sequer um cêntimo para luxos; por fim, a noção estética, de que não me acho desprovido, a qual me diz que essa oferta de nada serviria a V. Ex.ª

Não pude avistar V. Ex.ª, ainda que fosse num relance virtual, na memorável jornada recentemente vivida bem perto do sítio, onde V. Ex.ª derrama abundantemente os tesouros da sua imensa ciência jurídica. Creia, Meritíssima Juíza, que eu teria o mais subido gosto em tal momento, e essa hora seria, para mim, motivo de um grande orgulho. De facto, nem todos os dias pode um celerado da minha dimensão gozar tão insigne honra. Assim perdi uma inquirição que, a avaliar pelo percurso seguido desde que os fados ditaram que se cruzassem os nossos caminhos, se terá certamente pautado pelo primor jurídico que distingue V. Ex.ª e com o qual, há tanto tempo, me venho deliciando.

Quando V. Ex.ª depôs, ainda eu estaria pelo aeroporto, acabado de desembarcar.  Negar-me o já confessado prazer de a ver, foi uma peça que me pregaram. Não estarei, contudo, a ser demasiado severo?  Se calhar não foi por pirraça que não se esperou a minha chegada a tribunal, recebendo eu apenas a paga que o meu atraso mereceu. Está visto que os Açores, fustigados por aquele bravio temporal que os assolou na véspera do julgamento, têm sobejas razões de queixa contra mim, porque manifestamente fui eu quem desencadeou a fúria dos elementos.

Descontada, porém, a volúpia de que fui privado quando me tornaram impossível vislumbrar a gentilíssima figura de V. Ex.ª, seria pouca a utilidade que eu tiraria por estar presente. Com efeito, a acção que me foi instaurada pelo envio das meias (crime abominável, não tem que ver), essa acção, repito, esteve toda ela dominada pelo propósito bem definido de realizar a mais límpida e densa justiça. Isto basta. Para quê, pois, atender a formalismos processuais, autênticas minúcias como seja exemplo o de tomar declarações à ofendida sem a presença de um arguido ausente porque quis?

Deixemo-nos de futildades! Por isso é que a Justiça emperra e não anda. E vêm uns tantos, contando-me eu entre eles, deitar culpas sobre parte da Magistratura. Que tamanha crueldade! Sou obrigado a passar em revista toda a minha posição nesta matéria e, parafraseando Fradique Mendes numa das suas cartas (1), exclamo ao mesmo tempo que bato no peito: Esta mediana gente, no meio da qual tenho andado e partilhado tão injustos preconceitos, nunca compreenderá a imensa virtude de todos os nossos Magistrados!

Sou ainda servido de informar que um M.mo Colega de V. Ex.ª, na comarca que foi palco da farsa que trato, me fez saber que não andam os tribunais a reboque de mim, mas que deve ser o contrário. Veja bem: eu, que imaginava ser obrigação de todos irmos a reboque da lei, ao ouvir tal sentença, sofri um rude golpe. Cheio de zelo, quis ainda o Senhor Juiz continuar a catequizar-me, dizendo que ali eu nada mandava. Fiquei muito triste, conforme é de calcular. No entanto, por não comungar da religião de que ele é apóstolo, respondi-lhe que tanto como ficara ciente de que não viriam os tribunais ter comigo, assim estivesse ele certo de que eu não me deixaria arrastar por nenhum tribunal e que, se continuasse a pregar, valeria o mesmo do que falar para uma parede. Mas é óbvio que agi assim só para o arreliar. Entretanto e apesar de eu estar acatando a ordem de abandonar a sala, nela entraram dois agentes da PSP, o que provocou feíssima reacção da minha parte. Imagine só --- lancei em rosto ao M.mo Colega de V. Ex. que, nestas lides, só me causará pejo ser visto no meio de alguns Magistrados e nunca o de estar custodiado pela polícia!

Deste incidente, não dá conta o suporte digital do acto judicial então realizado. Desapareceu ou, muito oportunamente, não chegou a existir. De resto, a sua audição é muito imperfeita. Daquele que devia trazer-nos o registo do julgamento do crime nefando, nem falar: ainda se ouve pior, ficando-se sem saber se também há cortes. Bastante conveniente, principalmente se atendermos à bulha havida para me retirarem da sala de audiência e ao momento em que assinalo que o escrivão-auxiliar me fracturou o polegar.

M.ma Juíza! Que V. Ex.ª não viva feliz, lamento. Que se sinta em conflito interior, compreendo. Que sofra terrivelmente ao ver a sua obra como Magistrada, também não causará surpresa a ninguém. Mas, ao menos, procure ser prática: a sanha que a inflama contra mim, a nada conduz se exceptuarmos esta infindável cadeia que se desenha há já vários anos.

É V. Ex.ª vingativa? --- Se não é, representa muito bem! Transpõe para os juízos que profere, os problemas pessoais que a dilaceram? --- Há todos os sinais disso! Tem decidido, comigo, contra Direito? --- Aqui, o sim não pode ser mais categórico! Nesta freima de reagir, V. Ex.ª só vem provando uma coisa: sou um elemento incómodo; molesto-a; e consigo ofendê-la. Ora isso enche-me de gáudio, porque mostra bem a distância que nos separa: na verdade, nunca eu me sentiria injuriado por V. Ex.ª uma vez que não ofende quem quer, mas só quem pode!

Nesta minha curta passagem pela ilha, uma ilha onde V. Ex.ª desgraçadamente não cumpre as suas funções como devia fazê-lo, não estranharia se porventura me participassem que o meu comportamento havia chocado as boas consciências burguesas da terra. Isto de chamar-lhes boas consciências é um eufemismo reservado a uma casta de gente que não suporta o mais pequeno beliscão no sossego do seu ramerrão diário. Afinal, que fiz eu de tão execrável? --- Pois bem! Levado pela curiosidade, quis informar-me da vida cultural que anima a ilha. Corria o Carnaval e, por isso, perguntei se uma afamada e antiga casa de espectáculos, que aí se ergue, apresentaria algum número de circo. Disseram-me que isso agora estava a cargo de alguns Magistrados de um Tribunal. E logo acrescentaram que esses acrobatas são exímios nos funambulismos ali verificados. Não fiz mais do que adaptar-me ao estilo.

Joaquim Maria Cymbron
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  1. Ao Sr. E. Mollinet (Eça de Queiroz --- A Correspondência de Fradique Mendes).

JMC

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

QUEM É CRIMINOSO?

P.188/13.0 TARGR

1.º Juízo

 TJPDL

 

As alegações, que abaixo se perfilam, foram preparadas para defesa em audiência de julgamento. Ainda consegui lê-las até pouco mais de um terço. Dali para diante fui impedido de prosseguir.

Pior sucedeu quando me foi vedado interferir na inquirição das testemunhas, diligência na qual depositara a esperança de produzir prova da verdade contida nas alegações que aqui apresento.

Em caso algum, ninguém melhor que o arguido conhecerá a causa que se debate em juízo, a sentirá e aspirará a ganhá-la. Quando esse arguido não é propriamente hóspede em Direito, negar-lhe a possibilidade de exercer a sua defesa nos termos da lei processual penal, poder que está consagrado em tratados internacionais livremente celebrados pelo Estado Português e que regularmente ratificados e aprovados passaram a fazer parte da ordem jurídica interna, recusar-lhe isto, insisto, tem sabor a crime.

Se já sobrava quanto nesta peça descrevo, o que se passou após a minha retirada compulsiva da sala de audiência foi  um número de circo, triste e apagado!


Venho acusado de crime de injúria agravada na pessoa de uma Magistrada Judicial. Francamente, não percebo como.

Injúria verbal não a fiz: vivo em Coimbra e a queixosa está em S. Miguel, onde eu não venho há mais de quatro anos. De resto, nunca me cruzei com a Senhora Magistrada, aqui ou noutro sítio. Uma vez, só uma, tive ocasião de a ver por teleconferência, mas não interferi na inquirição e também não se procedeu a qualquer acareação. Repito, pois, que contacto pessoal e directo nunca houve.

Terei cometido o crime por escrito? – Não me parece. As linhas, dirigidas à queixosa, limitaram-se a sumariar os incidentes de um processo. É isto crime contra a honra? – Não o creio: de uma ponta à outra do texto enviado, nem uma palavra se pode considerar injuriosa, trate-se de quem se tratar.

Onde está, pois, a ofensa? Será nas meias? Vejamos:

As meias foram oferecidas à queixosa, nestes autos, e também à Juíza que se sentiu ofendida no processo em que foi julgadora a queixosa. Dispondo a lei que «à difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão.» (CP art. 182.º), cabe perguntar:

As meias são uma peça escrita? Traduzem gestos? Constituem imagens? – A todas estas interrogações, é líquido que a resposta há-de ser um rotundo não. Caem, porventura, na previsão do estabelecido pela norma acima citada, quando esta, na sua parte final, fala em «qualquer outro meio de expressão»? – Tenho o hábito de fugir a toda a casta de trocadilhos: acho de péssimo gosto esse recurso. Mas desta vez não resisto a dizer que este Tribunal só tem de apreciar o envio de uma meia (da outra, não era destinatária a queixosa) e que sendo meia, não é meio, muito menos um meio de expressão. Promiscuidade com a identidade de género, já levamos mais do que a conta!

Daqui para a frente, não se exaspere o Tribunal se eu der a impressão que discorro afastando-me do objecto do processo. A verdade, porém, é que o feito sub iudicio não é um caso isolado. Como as telhas de cobertura de uma casa estão imbricadas umas nas outras, assim estão os presentes autos ligados a muitos mais, numa extensa e fastidiosa cadeia de processos, onde todos ou quase todos estão, uns para os outros, numa relação de causa e efeito. Ouvindo-me, logo o Tribunal se dará conta do estreitíssimo laço que une este processo a litígios que o precederam ou o rodeiam, e só pesando esse conjunto é que, salvo melhor juízo, estará em condições de se pronunciar sobre aquilo de que sou acusado. Estou firmemente convicto que é inegável a causalidade adequada entre tudo quanto aqui trarei à colação, o que se me afigura bastante para, pelo menos, atenuar a minha culpa, na eventualidade de vir este Tribunal a considerar crime o facto por mim praticado.

Sem prescindir do que já disse, a saber, que esse facto não preenche o crime que me é imputado (e entendo mesmo que nenhum outro), por mera cautela e tanto quanto isso me for possível, não deixarei de desenhar os traços da minha personalidade perante este Tribunal, e de lhe transmitir todo o contexto em que se integra o que aqui se vai julgar.     

Nesta conformidade e antes de prosseguir, convém que nos detenhamos a reflectir neste ponto: Quando o agente da autoridade comete abuso de poder, lá está o Juiz para repor as coisas no seu devido lugar. Se é o Advogado quem conduz mal a causa, sempre o Juiz pode chamá-lo à ordem e sanar os erros cometidos. Por fim, da prudência do Juiz esperamos que modere os destemperos dos que legislam. Mas se é o Juiz que falha, quem temos atrás dele para nos valer? E é aqui precisamente que assenta o drama – a crescente angústia com que se repete esta interrogação: Qui custodiat custodia? Não há resposta para esta pergunta. Ora o que não tem remédio, remediado está. Por isto mesmo, sobre os ombros da Magistratura Judicial, cai uma responsabilidade que eu não hesito em qualificar como a mais ingente entre a dos restantes detentores do poder soberano.   

Há casos definidos por lei nos quais, em processo-crime, os Tribunais podem funcionar com intervenção de júri. Que eu saiba, raramente é requerida a sua constituição. Será a intuição de que, no meio do lodaçal em que vamos patinhando, será bom que se erga um corpo que escapa ao sufrágio das maiorias? É provável. Haja, pelo menos, um grémio que nada deva à escolha de uns quantos, parcelas de uma soberania imaginária que, na feira dos mitos que a democracia é, dizem à classe política que há-de governar conforme prometeu, o que quase nunca acontece. É sempre saudável que não se deixe o interesse colectivo ao sabor de um método selectivo, que pretende encontrar a expressão dos mais altos expoentes do todo nacional, quando, além do que geralmente apresenta de insubsistente, volúvel e caprichoso, a maior parte das vezes só lhe é dado escolher entre os mais ambiciosos e exibicionistas. Se, como agora, o eixo de valores morais se apresenta tão torcido, a necessidade de alguém que se imponha por ter real qualidade, torna-se ainda maior, e aparece como última esperança de salus populi, antes do recurso à suprema razão da força armada, medida gravosíssima, mas incontornável, quando há o risco de se desfazer por completo o tecido social.

Pelo que agora expus, não me vejo a pedir jurados. Palpita-me que prova mais eloquente de consideração pelas Magistraturas de carreira não será fácil oferecer, não obstante as críticas que desenvolvo, sempre que, no meu entender, não são respeitados os padrões do Direito. Os Tribunais existem, pois, como derradeiro refúgio da paz vivida dentro de uma ordem que se deseja justa. No seu exercício, têm de pairar acima das partes porque discutir não é função que lhes caiba: os Tribunais têm como missão o suum cuique tribuere e, no seu exercício, deve imperar o esforço permanente de que o Direito por eles definido seja concretização perfeita da ars boni et aequi, conforme enunciava o CIC.1

É uma indignidade a dos Magistrados que bebem o cálice amargo da humilhação até às fezes, porque neles o desejo de retaliar afoga o sentimento do amor-próprio. E, no entanto, vemos alguns tragarem as afrontas recebidas, engolirem tudo conforme podem, para terem o mesquinho prazer da vingança. Depois, quando se torna sumamente aviltante aguentar mais, lá reagem. O pior vem se se lembram de desistir da acção intentada, sujeitando-se à oposição de quem chamaram a juízo. O pior? – Não, porque um caso conheço eu, pelo menos um, no qual depois da instauração do procedimento criminal e da tentativa de lhe pôr fim com desistência da queixa, o que não se alcançou por oposição do arguido, descobriram que o crime afinal não fora crime. Quem apareceu como protagonista deste triste acontecimento? Sabe-o bem esta comarca de Ponta Delgada: o arguido fui eu e a queixosa é a ofendida nestes autos.

Diz-se que a Maçonaria, entre os seus estribilhos favoritos, prezava especialmente aquele em que proclamava levar as instituições ou às violências que comprometem, ou às transigências que envergonham. Parece ter esquecido que esse caminho tem dois sentidos: o caso do processo, a que acabo de aludir, é um bom exemplo de como se pode virar o feitiço contra o feiticeiro!

No crime, que aqui se aprecia, afinal de que sou acusado? Basicamente, como ficou dito logo no início, acusam-me da autoria de agravos na pessoa da queixosa e nas circunstâncias já referidas. Para além do que ali disse impugnando a natureza ofensiva de quanto me é imputado, e sem prescindir dessa defesa, contesto que agravos são os agravantes que os fazem, quando são agravados: se agravei, foi porque antes fui agravado; se feri, terá sido porque primeiro me feriram. A ter efectivamente agravado alguém, estou firmemente convicto de que exerci um direito de retorsão (CP art. 186.º, n.º 2). E fi-lo de forma tão suave que não é sensibilidade o queixume despedido: quem o solta, dá prova de uma susceptibilidade doentia. Se ponderarmos bem todo o dano que a queixosa me vem fazendo desde o processo que foi ocasião dos presentes autos, é força confessar que o meu comportamento não passa os limites de um moderado ripostar, de uma réplica quase ou mesmo inocente. Como é exemplo revelador o feito ora trazido a julgamento, o qual, torno a lembrar, nem crime constitui, pelo que já referi logo ao abrir estas alegações.

Julgue-se como se julgar, não se pense em negar aos particulares o recurso ao aludido direito de retorsão. Trata-se de um direito natural, que a lei humana não cria, mas apenas reconhece e consagra. Se qualquer legislador combater esta reacção, e ainda que pesadas sanções acompanhem essa proibição, ela não deixará de continuar a ser usada por quem for perturbado em circunstâncias que não permitam outra resposta. Ainda poderá alcançar-se passividade por parte daqueles que a tudo se sujeitam; já não se conseguirá o mesmo de uma comunidade inteira. Seria equivalente à interdição geral de respirar, o que é manifestamente inexequível.

Os Tribunais têm o poder de ditar a sorte das partes envolvidas em conflito. Mas nem sempre o fazem com Justiça. Nalguns dos casos que me dizem respeito, andaram muito longe dela, procedendo de forma gravemente culposa. E quando se afastaram do que prescreve o direito, prevaricando claramente, que aconteceu aos Magistrados que o fizeram? – Rigorosamente nada! Os julgadores consideraram os denunciados por aquele crime como quem age sem consciência de violar o direito. Inteirei-me assim de que há Magistrados que, pelo menos algumas vezes, se perderam no caminho da lei. Como esses Magistrados dispõem da minha honra, da minha fazenda e, indirectamente, até da minha vida, é óbvio que não posso ficar sossegado.

Estou persuadido que esta insegurança se estende hoje a sectores muito vastos da população portuguesa. Direi mesmo: ela começa a ser geral. E nem o facto de a maior parte das pessoas ser incapaz de avaliar com precisão a profundidade do mal, reduz a intranquilidade que se respira. Pode mesmo aumentá-la, já que a ignorância nunca foi boa conselheira contra o medo. De resto, se a opinião pública não é intelectualmente perspicaz no grau detido pelos conhecedores das leis, nem por isso deixa de pressentir o perigo tão agudamente como os mais sábios o vêem.

Ao longo deste conflito, várias foram as vezes em que assisti à aplicação da lei para lá de tudo o que a doutrina nos ensina, e a jurisprudência – a jurisprudência sã e recta – observa. Se esta fosse uma jurisprudência uniforme, nunca mais eu pediria justiça diante de um tribunal português. De qualquer maneira, cheira-me que se aproxima a passos largos a fase de erros de ofício e de malícia, sucedendo-se uns aos outros sem parar. Aquilo a que então se assistirá, será a contumácia no abuso da lei. E a conversão está vedada a quem é relapso.

Lamento que não estejam presentes os Magistrados que eu critico. Não me refiro exclusivamente à queixosa nestes autos, porque recordo aqui todos quantos venho criticando desde há muito tempo e que foram, uns causa directa, e outros mera ocasião do que está sub iudicio. Quase todos foram alvo de queixas por mim apresentadas: e o número destas é bem elevado! Nenhuma foi julgada procedente pelo que os Magistrados, nelas denunciados, passaram incólumes esse escolho. Agiram sem saber o que faziam. Já se falou disso atrás e, agora, não é tempo de voltar ao assunto. Serve esta memória para mostrar que se é certo que nenhum denunciado foi punido, só numa queixa se deixou de considerar preenchido o elemento objectivo do tipo legal de crime. Em todos as outras, lembro de novo, foi a ausência de dolo, incompreensivelmente alegada, que valeu aos denunciados. Tendo sido estes factos que, a par de outras causas, me moveram a assumir o comportamento pelo qual respondo, é força concluir que não são elementos despiciendos.

Aos agentes do que acabo de recordar, gostava de os estar vendo agora, olhá-los de frente e, em voz de todos audível, torná-los cientes da revolta que me enche o peito. Alguns passaram por aqui, mas já se foram; outros não foram citados, que o rol ia já comprido. Não me resta mais remédio que notificá-los do banco em que me encontro:

Criminoso, eu? Não! Criminosos sois todos os que, de processo em processo, me vindes empurrando para este e outros julgamentos!

É bem possível que saia deste Tribunal vergado ao peso de uma condenação. Cairia de todos os modos sob suspeição que eu dissesse agora o que faria, se fosse o julgador. Mas isto garanto: se a vara do mando alguma vez tivesse estado nas minhas mãos, eu nunca levaria ninguém a um grau de desespero tão forte que não lhe deixasse via diferente daquela que tenho sido obrigado a percorrer; e, na posição de simples cidadão, despido de qualquer veste de soberania, ficaria mais atento aos sinais de aviso lançados por quem se me queixasse de que eu punha em risco a sua sobrevivência.

Esses sinais foram em número impressionante. Como nunca haverá correspondência exacta e precisa entre disposições de ânimo e grandezas quantificáveis, da resignação que mostrei apenas direi que ela correu na razão inversa do caso que de tudo isto fizeram: à medida que o meu drama era ignorado, crescia a minha paciência; e, simultaneamente, à minha passividade respondiam os órgãos judiciais com uma prepotência recrudescida. Todos? – Não! Mas aqueles que o fizeram, usaram de uma dureza em grau mais que suficiente para me esbulharem por completo.

O meu colapso financeiro consumou-se há muito, e rapidamente caí na ruína. Sobrevivo graças a ajudas que recebo de amigos e à mensalidade que me é paga por uma das maiores culpadas do estado a que me reduziram. Já lhe fiz saber que aceito essas prestações a título de indemnização antecipada. E também garanti que, no dia em que cesse o envio desse dinheiro, ninguém me verá a tirar comida do contentor do lixo, nem estendido a dormir em bancos de jardins ou debaixo das pontes. Na prisão, qualquer recluso tem um tecto para abrigá-lo e mesa que o farte. Maior eloquência, não a creio possível.

As instâncias, com uma ligeireza que choca qualquer pessoa de são equilíbrio, durante bastante tempo mais do que o admissível, vêm-se mostrando insensíveis a esta situação. A minha penúria não as impressionava, nem impressiona. Como resposta aos meus argumentos, têm deixado escapar insinuações de uma riqueza oculta de que eu seria titular, mas cuja existência até hoje nunca provaram, não podendo fazê-lo porque essa riqueza só vive na mente dos que a ela aludem. Aguardavam de mim a confissão de que era dono de um património apreciável. Ora se eu tenho o dever de provar os direitos que alego, já não sou capaz de declarar bens fabulosos, que ninguém arrola nem é capaz de dizer onde se encontram. Façam-no, e eu lhes prometo que não tardarei em ir buscar essa fortuna escondida.

Há, em S. Miguel, quem suponha que o motor desta imensa e complexa pugna se reconduz a rixas geradas em inventário para partilha judicial de uma herança. É a imagem fiel dos erros que podem viciar a análise que fazemos sobre o agir dos outros, sempre que nos domina a maldita cupidez do oiro, esse metal luzente que deslumbra a vista, ofusca a mente e envenena o coração. Esta impressão singular passou de fora para dentro dos Tribunais, levada por misterioso e enganador correio, mais enganador que misterioso. Quem tiver um mínimo de agudeza, depressa verá que eu pleiteei, antes como agora, não para enriquecer, mas à procura de dinheiro, que era meu, o suficiente que pagasse os custos do combate por uma causa que me transcende.

As censuras, que tantas vezes levanto contra os excessos que me atingem, mais que um direito, constituem um dever. Se nenhum projecto eu tivesse, admito que poderia ser bastante meritório sofrer calado e quieto o tratamento brutal de que sou vítima. Porém, o sonho que alimento há mais de catorze anos, dirige-se à instituição de uma Fundação. Essa Fundação destina-se a levar socorro aos doentes em fase terminal; ser apoio para mulheres em risco de abortar, e mães que queiram cuidar de seus filhos, a tempo inteiro, sem poder fazê-lo porque um só salário não chega para sustento do agregado familiar; por último, soar em tribunal como voz dos que a não têm por carência de meios económicos. Levará o nome de meu Pai: será o tributo da lealdade que, como filho, lhe devo. Dentro do possível, procurará ser ainda o abraço que lhe faltou à hora da morte, e que fui impedido de lhe dar pela acção criminosa de uns quantos que por aí se passeiam e se chamam seus filhos.

Mantenho a convicção de que me venho defendendo, por um modo que, conforme já sustentei, é relativamente brando. E de que me defendo eu? – Acabei de aflorar esta matéria: defendo-me de uma agressão actual, que se prolonga no tempo, se mostra concertada e, na qual, os seus autores só mudam porque se sucedem uns aos outros.

Procurei salvação em sede própria – os Tribunais. Que lucrei com isso? – O resultado tem sido este: atrasos; incidentes; custas ditadas com fundamentos que são autênticos caprichos; omissão de diligências úteis à descoberta da verdade material, uma delas quanto ao que pode ter sido uma tentativa de homicídio exercida contra mim; distribuições de processos que desafiam a lei das probabilidades; um conhecimento oficioso a actuar quando devia e quando não devia; deturpações da matéria de facto; notificado de que no passivo do arguido não entra o que ele despende em juízo; condenado uma vez por facto de terceiro, e noutra ocasião sem ter sido constituído arguido; decisões obrigando os meus patronos a viajarem escusadamente até S. Miguel; recusas em custear as minhas despesas de deslocação a S. Miguel, com o MP promovendo que eu viajasse a crédito, sem me esclarecer como pagar depois a passagem aérea; despachos judiciais indeferindo a mesma pretensão, um deles sem ouvir testemunhas que dariam fé da minha insuficiência económica e o outro com notório falseamento do que aleguei, pondo-me a comer à razão de €15,00 por mês, o que nem na cozinha económica se consegue, e qualquer criancinha do ensino básico sabe que, em cantinas subsidiadas pelo Estado, também não chega; nulidades insanáveis ocultadas; prejudicado, em altíssima instância, por dois casos julgados formais, que foram contraditórios; um recurso perdido, com todas as consequências legais, porque o Tribunal Constitucional arbitrariamente não conheceu do seu objecto; enfim, estas são algumas das pedras preciosas encastoadas numa coroa que me pesa muito porque não é pouco o que me custa em dinheiro e amargura. De todo o cortejo de desmandos e de temerárias ousadias contra a pureza das leis, que me amolgaram económica e animicamente, é um pálido resumo o que aqui ofereço. Mas tudo isto que revelo e o que está por relatar, não fugirei a provar se a tanto for intimado.

Durante larguíssimo tempo, olhei severamente aqueles Tribunais onde se julgam os chamados crimes de guerra. Os que ali respondem são os vencidos e, na bancada reservada aos Juízes, só se sentam os do bando vitorioso. Contudo, o dobrar dos anos e um reflectir mais aturado corrigiram-me: esses Tribunais têm o mérito assinalável de nos mostrar que imparcialidade, no âmago do conceito, é característica que não existe no seio da Judicatura. Não existe ali, nem se encontra em parte alguma.

Mas regressando ao domínio que, neste momento, nos há-de preocupar, isso também não constitui obstáculo a uma decisão equitativa. No dia em que se formasse um Tribunal imparcial, nesse mesmo dia ele deixaria de ter sentido. Pouca ou nenhuma falta faz, invocar o caso extremo da guerra para compreender que a imparcialidade requer do julgador uma ascese apuradíssima, apenas viável se a sociedade, à sua volta, fosse também ela um corpo sem mancha. Seria o Paraíso, onde se acabam todos os litígios porque aí é a Caridade que impera. No mundo que nos é dado viver, o que há de reprovável na administração da Justiça, não é propriamente que os Magistrados estejam sujeitos a influências endógenas e exógenas, que inevitavelmente actuam e os condicionam. Isso, quanto a mim e como venho dizendo, é uma fatalidade. Grave, realmente condenável, é quando esses Magistrados se movem por favor, ódio, dádivas ou presentes, e ainda se, conscientemente, decidem contra direito. Isto tem nome – é denegação de justiça e prevaricação. Constitui crime. E, um após outro, arrastaram-me até aqui.

Sempre que os poderes públicos falham na protecção devida aos particulares, devolve-se a estes, por lei natural, o direito de legítima defesa. E se o incumprimento dos órgãos competentes, mais do que falta de tutela dos interesses daqueles que clamam por Justiça, se converte numa perseguição inequivocamente agressiva, como largamente tem sucedido comigo, que espanto pode causar que os lesados por esse modo usem de meios nem sempre institucionais? Quando nos vemos diante de um quadro onde já nem sequer o Direito é aplicado, por incúria ou por maldade daqueles a quem incumbe fazê-lo, será razoável acreditar que esses prevaricadores voltem a pisar os trilhos da Justiça? – Duvido sinceramente que se possa responder afirmativamente!

A sociedade portuguesa padece de um imenso mal: as classes de cujos grémios saíam as figuras de proa na vida nacional, por vezes sem outra explicação mais que não fosse a que tem subjacente um infeliz fenómeno de inércia, classes que davam os elementos politicamente dirigentes e economicamente dominantes, essas classes extinguiram-se! A tragédia, a falar verdade, não está certamente aqui. O que nos deve afligir é a carência de qualidades naqueles que vieram ocupar os seus postos: só não merecem nota de absoluta nulidade, porque o nada não existe. No universo da administração da Justiça é onde isso se torna mais chocante e inquietante: aí, o mal assume proporções assustadoras porque sem dúvida os Tribunais são, como mais que uma vez lhes tenho chamado, aquele ádito sagrado onde os povos depositam a sua esperança de uma ordem justa, e que olham como paládio das suas liberdades e garantias.

No meio do desacerto, a que se chegou, é-me completamente indiferente a sorte que possa ter. Nem esperem ouvir de mim qualquer pedido de clemência, porque só é clemente quem conhece a Justiça. E, a avaliar pelos precedentes, já não sei a quantos Tribunais de Portugal restará ainda a noção do que esse valor significa! Temo que serão poucos, muito poucos mesmo. Se eu tiver a sorte de estar diante de um desses, também será desnecessário que grite por clemência, porque não há Justiça onde não houver misericórdia, e só com misericórdia se realiza Justiça. Caso seja o Tribunal, que me julga, um dos últimos que ainda guardam intacta a antiga honra da Magistratura Portuguesa, impoluta como poucas segundo reza a fama, se for um desses, então certamente alcançarei Justiça. Portanto, será supérfluo o pedido de clemência onde já reina a Justiça.

De resto, há outra razão pela qual não grito por clemência: a minha consciência não me acusa de nenhum acto imoral, e a observância da ética é a minha maior preocupação. Posso escutar e até seguir a voz de varões doutos e íntegros; mas não recebo lições de um sistema que é subversão dos mais sagrados valores espirituais, e negação violenta de interesses materiais fora de toda a dúvida.

A situação nacional, desde as altas esferas do poder até ao mais rasteiro  do quotidiano, é filha da traição, de uma grande traição, a mais negra e feia traição que já se abateu sobre a terra portuguesa. Nada me podem ensinar os campeões desta traição e da miséria moral que a acompanha, mesmo que eu, falido de brios ou perdido o juízo, quisesse aprender com eles. É que os códigos de Direito não constituem os principais elementos estruturantes do carácter de uma pessoa, até quando as leis são reflexo do que há de positivo e saudável no povo onde vigoram. Num plano ideal, é o sentimento jurídico que cria a lei e nunca o contrário. Agora que a iniquidade institucional veio dar o tom ao comum do nosso viver, pouco valor encontro nas leis que nos regem. Com efeito, o sentido da virtude e da honra, só a doutrina religiosa e a moral doméstica são capazes de o incutir. Era no seio da família, nas palavras com que as Mães embalavam seus filhos, que essa catequese actuava desde a mais tenra idade. Mas a família, feita pedaços pelo divórcio, confundida nas uniões de facto, desfigurada nas parelhas homossexuais, muitas vezes açougue de carne humana inundado pelo sangue derramado no aborto, e também a família, sem consciência e sem pudor, capaz das mais baixas vilezas, como é exemplo aquela à qual teimam em associar-me, essa já não é a família como Cristo manda.

Antes de terminar, seja-me permitida uma rápida excursão por terrenos da teologia, que é afinal o catecismo que procuro seguir:

Não me declaro contrito pelo que fiz desde o início da tristíssima história que aqui me trouxe. Confessar arrependimento, pressuporia que me reconhecia culpado. Ora, a este respeito, já disse o suficiente: nem a acusação, à qual respondo, se funda em qualquer crime, como julgo demonstrado pelo que aleguei no princípio desta minha defesa; nem será curial ignorar quanto está para trás das palavras que acompanharam o simples envio de umas meias, facto ao qual a acusação atribui dimensões de uma injúria que não existiu.

Bem feitas as contas, o prejudicado tenho sido eu como largamente transparece do que venho desenvolvendo. Não tenho, pois, desculpas a apresentar. Mas também não procuro exercer represálias sobre quem quer que seja. É um propósito que nunca coube no meu coração, e que a minha inteligência abomina. Se eu for tão desventurado que um dia se desvaneça a moral na qual me formei, espero ao menos que não se apague a luz da minha razão, e consequentemente me mantenha capaz de continuar a ver que a vingança é fria, nada produz e tem absolutamente de ceder lugar ao perdão.

Quando a religião prega a necessidade de pôr em prática esta virtude, enuncia um princípio de transcendente sabedoria. De facto, não há compensação para a ofensa recebida, se abafarmos o perdão. Nenhuma injúria, física ou moral, encontra satisfação plena a troco de uma indemnização imposta ao culpado, por mais volumosa que seja. Sempre fica algo por pagar. Só o perdão pode preencher esse vazio. É claro que isto não anula o direito a uma justa reparação2, pelo que, sem confundir-se com a pena de Talião, se torna manifesta a admissibilidade da luta em defesa dos legítimos interesses do ofendido. Contudo, essa acção só é perfeitamente remuneradora com o suprimento do perdão.3

O lesado nos seus direitos, que se declara integralmente compensado a partir do momento em que o prevaricador paga pelo dano provocado o montante que os Tribunais fixarem, confessa tacitamente que os seus bens, mesmo os mais valiosos, se permutam a troco do castigo infligido ao devedor da reparação. Demonstra com isto que não houve ofensa, mas sim algo equiparável a um negócio livremente celebrado e que até podia ser prévio à ocorrência geradora desse ressarcimento. Sucede, porém, que se torna razoável duvidar da validade desse negócio, porque não é líquida a licitude do seu conteúdo. Mas isso é outra questão. Antes, o que logo resulta é que nunca se alcançará paridade entre punição e ofensa, pelo que nenhuma acção humana, seja prisão, indemnização por dinheiro, ou as duas coisas juntas, nenhuma sanção punitiva contra o causador do mal, insisto, bastará para fazer regressar a vítima ao estado em que se achava antes da lesão sofrida.

Pergunte-se à mulher violada se recupera o equilíbrio com a paga da indemnização ordenada por tribunal; procure-se saber se os pais de menor desviado para a prática de abuso sexual, se dão por compensados quando recebem o dinheiro que o criminoso é condenado a entregar; apure-se, também, se o proprietário roubado em bens de inestimável valor afectivo se dá por satisfeito com a quantia que recebe do ladrão, em paga do que foi subtraído e cujo rasto se perdeu; investigue-se, por fim, se a vítima de injúrias encontra conforto na remuneração monetária. Se responderem que sim, se declararem que se sentem plenamente reintegrados na situação em que estavam, então eu direi que essa mulher não foi violada, mas sim que se prostituiu; esses pais nada sofreram com a desgraça do filho, porque o venderam; o dono dos bens roubados não foi assaltado, visto que alienou a título oneroso aquela parcela do seu património; e o ofendido pelos insultos não tem de se queixar, uma vez que trocou honra por uns cobres.

A História – e aqui já interfere a Fé porque agora falo como católico – só regista um caso em que o pagamento foi equivalente ao dano causado: refiro-me, como é bom de ver, ao sacrifício do Calvário. Uma ofensa infinita, porque feita a Deus, tinha de ser expiada de forma também infinita. É a única vez, única e irrepetível, em que houve uma correspondência total, porque o pagador foi o próprio Deus --- a teologia chama-lhe mérito ex toto rigore iustitiae. Se descontarmos isto, nenhuma outra penitência realizada pelos mortais, por maior dimensão e intensidade que tenha, chega para apagar os pecados que diariamente todos cometemos: salva-nos a misericórdia alcançada naquele momento em que foi dada satisfação integral pela nossa dívida!

Perdoar, há muito tempo que perdoei. Perdoei logo que começou este desaforo. Mas não desistirei de alcançar o reconhecimento de que, ao longo deste tormentoso combate de catorze anos, a razão esteve do meu lado. Até atingir esse objectivo, continuarei a lutar!


Joaquim Maria Cymbron

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  1. D. 1.1.1 pr.
  2. Cfr. João Paulo II - Dives in Misericordia, VII, 14.
  3. Cfr. Sl. 102, 8-10; ib. 142, 2.
JMC