Toreador

Não é difícil perceber a razão pela qual se insere, aqui, uma das mais famosas árias do panorama operático --- https://www.youtube.com/watch?v=fOxDzDyLEMQ

domingo, 11 de novembro de 2018

'REIPUBLICAE PROCURATIO'

A 14MAR17, apresentei a Sua Excelência o Primeiro-Ministro uma petição individual para os fins estabelecidos na CRP art. 52.º, n.º 1. Com data de 23MAR18, recebi resposta assinada pelo Chefe do Gabinete da Secretária de Estado Adjunta e da Justiça, o qual sufraga um  parecer que havia recebido.

Respondo, portanto, a este pela paternidade moral do que me é enviado; e, a quem subscreve o parecer, pela autoria material do mesmo.



Ex.mos Senhores:

As palavras, que seguem, vão ligadas à petição enviada por mim ao Primeiro-Ministro de Portugal. O resultado obtido mostra bem a qualidade dos governantes que temos!

Deve ter sido, na verdade, muito árduo o trabalho realizado por quem emitiu o parecer acolhido por V. Ex.ª, Sr. Dr. João Freire. Se foi bom ou não, vê-lo-emos.

Eu dirigi ao Governo, na pessoa do Senhor Primeiro-Ministro, uma petição individual. Nessa petição, requeri a esse órgão de soberania que submetesse ao Tribunal Constitucional a fiscalização da constitucionalidade da interpretação dada à norma contida no CPP art. 64.º, quando conjugada com outros preceitos do mesmo diploma legal. Acrescentava ainda que, na eventualidade de improceder o pedido de uma inconstitucionalidade por acção, teria então de ser atendido o que formulei no sentido de estarmos diante de uma inconstitucionalidade por omissão e que, por mor disso, devia proceder-se em conformidade.

Com esse objectivo, recorri ao ius positum, contra o qual expressei o meu desagrado. Fi-lo nos termos que constam da petição e alongando-me quanto julguei estritamente necessário. Usei argumentação tirada da própria lei, mostrando como nela se encontram elementos que julgo suficientes para o triunfo do que sustentava e continuo a sustentar. Infelizmente, V. Ex.ª responde trazendo para me contrariar um arrazoado cheio do que eu atacava na minha pretensão.

Isto foi, sem tirar nem pôr, o que V. Ex.ª fez. Sancionou o teor de quantas páginas o autor do parecer derramou, contendo os argumentos bem meus conhecidos e que eu expressamente tinha impugnado.

Responder ao arguente com aquilo que ele argui de insubsistente, merece um nome: ciclo vicioso! Mas não deixa de ser curioso que, na ânsia de acumular doutrina, o autor do parecer tenha esquecido a visão de Paulo Pinto de Albuquerque1, a respeito desta matéria. Ele esqueceu e V. Ex.ª não reparou. Duas coisas ou dois momentos muito felizes. De facto, é depoimento que não encaixa bem num discurso bastante gasto como é o que foi vertido no parecer que eu critico. 

Não se encontra, em tudo quanto aleguei para fundamentar a minha pretensão, uma só palavra de censura à preocupação de garantir ao arguido uma defesa eficaz em processo-crime. O que há, quanto a mim, é uma lacuna manifesta na forma mais feliz de dar cumprimento a fim tão louvável, constituído por uma plena, límpida e eficaz defesa do arguido, quando responde em Tribunal. Essa lacuna preenche-se, nos termos por mim indicados, sem tocar no que, de muito meritório, estabelece o instituto da defesa oficiosa. Mas o caso é que virtudes, Senhores, nem sempre ocultam os defeitos daquilo que já gozamos. E bom é que se aproveite essa falta, porque só deste modo se pode avançar. Em todos os campos!

Crede, Senhores, que lá chegaremos. Entretanto, resta-me prosseguir lutando pela melhoria de uma situação. Não apenas em meu benefício: ela toca a todos que queiram usar desse meio de defesa, direito irrefragável que tem de ser reconhecido e acabará por sê-lo.

Entre as duas vias que se abrem para uma defesa do arguido – a autodefesa e a defesa por patrono imposto –está visto de que lado parte a exclusão. Não se assaquem, pois, culpas a quem não as tem.

Não vou aqui repetir todos os preceitos então invocados: seria fastidioso e, com grande probabilidade, revelar-se-ia um esforço vão. Se V. Ex.ª, bem como o autor do parecer, não fizeram nenhum caso do que aleguei, quando era altura própria, não me parece que seja agora que lhe vão dar atenção.

De resto, seria um passo inútil, uma vez que o processo está encerrado e, em cima disso, vejo que se porfia em fechar os olhos perante uma questão que é incómoda para muito boa gente; por outro lado, resolvi não me dar ao trabalho de alinhar novamente os referidos preceitos, porque eles já estão numa peça também publicada neste blogue.

Do Tribunal Constitucional saiu o conselho de que eu devia seguir a via da fiscalização concreta da constitucionalidade. Como se eu não a conhecesse! Largos são os contos que aqui eu podia aportar para que fossem tomados em consideração. Limito-me a perguntar: conheceis, Senhores, algum advogado disposto a patrocinar um só cidadão que seja, numa causa assim? Eu não tenho notícia de nenhum. Se existe, é certamente uma auis rara na sua espécie.

A Presidência da República foi mais parca em razões: informou-me que «(...) de momento não se afigura oportuno dar sequência ao solicitado.» Assim me inteirei que o interesse, ligado ao que foi peticionado por mim, dependerá talvez de outros momentos mais propícios ao palácio de Belém.

Neste percurso, ficou de fora a Provedoria de Justiça, a qual, generosamente, veio repetir o comportamento do Tribunal Constitucional, consoante já atrás aludi. Porém, para lá da objecção então formulada – a do pouco ou nulo apetite de advogado que tome em mãos tal causa – agora há mais. Com efeito, às atribuições da Provedoria de Justiça cabe o poder de iniciativa em situações desta natureza, competência de que o Tribunal Constitucional carece.

Saber que as minhas alegações eram derrotadas, custar-me-ia; mas vê-las rebatidas e vencidas com apoio nos mesmíssimos fundamentos por mim atacados, é ser colocado perante um espectáculo de puro delírio.

V. Ex.ª, repito, louvou-se num parecer escorado em decisões que eu próprio citei, comentando-as. Nas que ali foram desenvolvidas, não se revela nenhum mérito estranho aos que tratam o Direito; do mesmo modo, naquele documento também não se descobre qualquer defeito naquilo que eu disse, ao criticá-las. Que moveu, pois, V. Ex.ª para aprovar parecer tão pouco curial? –  Nele não houve certamente a vontade de demolir a minha construção pedra a pedra, porque nem capaz foi de lhe tocar; o único intuito que dá a impressão de ter é o de esconder, soterrar, reduzir a pó! E para quê? Para respirar o triunfo mendaz de uma glória passageira!

No mínimo, nesses corredores de um departamento governamental, optou-se por tomar o lugar que pertence ao Tribunal Constitucional. Enfim, uma inocente trivialidade na prática da política caseira, onde soam umas liberdades muito cantadas, mas pouco vividas até porque os que mandam, não as observam. Contudo, nem é tanto por aí que eu vou.

Aqui chegados, distingamos se é que cabe distinção:

Qual a distância entre o direito de petição individual, consagrado na CRP art. 52.º, n.º 1 e aquele que nos assiste quando recorremos nos termos gerais da lei processual? Não será a diferença meramente formal, porque o mesmo é o sopro que os anima?

Realmente, temos um quadro que é o seguinte: na petição, o seu autor procura obter a defesa dos seu legítimos direitos; no recurso, a parte reage contra uma decisão que vai mexer com a sua esfera jurídica. Logo, se qualquer cidadão tem legitimidade para formular uma petição individual nos termos conhecidos, não se compreende como se lhe nega o direito de recorrer por si mesmo. Surpreendentemente, é isto que a lei processual determina (CPC art. 40.º e art. 58.º, com a excepção prevista no art. 42.º; e no CPP art. 64.º, n.º 1, al. e).

O recurso processual é um ponto alto da lide que se desenrola. Não prevejo contradita neste passo, e nem sequer devo estar desacompanhado. Poder-se-á objectar que este tipo de recursos e a iniciativa para uma petição individual são de impossível comparação? Creio, no entanto, que a objecção apontada, a haver quem a formule, não procede.

É certo que, no recurso processual, se submete uma questão controvertida à apreciação de uma instância superior, a qual é mais qualificada, pelo menos por definição. Sendo assim, é natural que se requeresse um cuidado mais apurado na peça que sobe, porque ali é maior o grau de exigência ou se supõe que é, enquanto na elaboração de uma petição individual, não haverá motivo para tantas cautelas! Porém, esta argumentação é inadmissível! Como se ousa desconsiderar a seriedade, o rigor, direi mesmo a austeridade que há-de presidir ao requerimento contido numa petição individual, reservando estas notas de actuação só para o recurso processual? Pois numa petição individual não se jogam valores iguais e,  quantas vezes, superiores aos que se decidem por via de um recurso processual?

Haja decoro, Senhores! Porque se é verdade que o autor de uma petição individual, por ser bisonho, não alcança a pretensa sublimidade de quem, por ofício, alega num recurso processual, impõe-se que não olvidemos um bom número de advogados, cujo patrocínio, a toda a prova, nem o nome de imperícia merecerá, porque foi declaradamente doloso.

Em suma:

Estas duas figuras – a petição individual, de um lado; e o recurso penal, do outro – as duas, analisadas uma a uma, mantêm estreita afinidade. Por isso, o autor da petição individual não difere em categoria de quem assina uma peça, na qual processualmente se recorre. Se isto não se concede, cumpre então decretar a assistência obrigatória por advogado a quem pretende lançar mão da garantia constitucional que é o regime da petição individual. Assim e prontamente! Sem o que se rompe a simetria que a dogmática do sistema jurídico há-de exibir, sob pena de fácil desmoronamento.

Confesso a V. Ex.ª, Sr. Dr. João Freire, bem como ao autor do parecer recebido por V. Ex.ª, que tal medida não é muito de recear. O seu efeito depressa desencadearia um alarido insuportável, com o qual a demagogia, em que estamos mergulhados, tem dificuldade em lidar. Mas lá que a coerência o manda, isso manda!  

Daqui se infere que não repugna ver a petição individual como figura de recurso que um mero cidadão faz subir perante os órgãos de soberania. Se assim é, como parece, não se compreende como não há-de o mesmo cidadão ter a necessária legitimidade para recorrer no decurso de uma lide processual. Isso há-de acontecer. E quando chegar, acabará este regime perfeitamente ilógico.

Da legitimidade para a petição individual, há-de passar-se à legitimidade para recorrer sem entraves; e esta acabará por se estender à autodefesa em toda a plenitude. Defesa, tudo o que acabou de expor-se agora à volta deste conceito, mesmo tudo, sem que falte uma vírgula, é defesa de uma ponta à outra. Só espíritos acanhados ou possuídos de rígido formalismo não o reconhecem.

É extraordinário como são visíveis as tendências do "não lhe mexas que assim vai a nosso jeito", táctica esta que é escrupulosamente observada por parte de alguns que, dos pés à cabeça, nem chegam a cobrir-se de vestes revolucionárias. São os mais perigosos. Todos eles têm, nitidamente aversão à mudança. Nalguns, que por ali se perfilam, adivinha-se um sentimento de insegurança; noutros, já a intenção é maliciosa. De todos os modos, é sempre revolucionário o impulso que os move: hesitante ou até inconsciente, nos primeiros; lucidamente agressivo, nos segundos.

Muitos estranham esta reacção. Ela, porém, é naturalíssima. A minha formação ensinou-me que o fogo revolucionário só arde para reduzir a cinzas o que foi criado. Mas nem sempre o efeito destruidor é resultado de quentes labaredas. Não poucas vezes a devastação provém de uma deliberada inacção. Esses conscientes propósitos escondem-nos, nos seus peitos cavernosos, aqueles que, com maior ou menor astúcia, ajudam a formar o exército de filhos queridos da Desordem!

Formam a falange pestífera dos conservadores!
 

Joaquim Maria Cymbron

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1. Comentário do Código de Processo Penal, art. 62.º, n. 13; e art. 63.º, n. 4, Universidade Católica Editora, 2.ª ed. actualizada.

NB.: A versão original encontra-se em arquivo de suporte gráfico. Entendi acrescentar-lhe umas notas com maior carga política. O que tem, estritamente jurídico, continua intacto!        

JMC

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

CARTA A UM JUIZ POSSIDÓNIO


É debaixo de viva emoção e forte desgosto que escrevo a V. Ex.ª

Nunca imaginei, confesso, que o Tribunal onde V. Ex.ª exerce as suas funções de magistrado judicial com uma probidade inexcedível, atravessasse tão aguda crise financeira.

Do exposto, é bem eloquente uma carta que recebi dos serviços de secção nesse Juízo. Ela é eloquente e, principalmente, toca o mais fundo da alma. Na realidade, pode até dizer-se que chega a comover as pedras da calçada!

Que encerra, afinal, essa carta cheia de conteúdo tão elucidativo e sensibilizante, como acabei de assinalar. Pois bem: tem a particularidade de ser uma carta simples. Para evitar equívocos, assente-se desde já que não é uma simples carta, mas sim uma carta simples. Que diferença há? Neste caso é muita a distância entre ambas. Uma simples carta é algo que não se concebe no Juízo de que V. Ex.ª é titular: sou incapaz de perpetrar tamanha afronta à estatura profissional de quem quer que seja! Tudo aí tem a marca da grandeza. Em contrapartida, uma carta simples poderia ser um meio idóneo de notificação, válido apenas para quem estiver num mundo infantil a imitar crescidos sem tino ou, numa expressão talvez mais pertinente, a brincar aos tribunais. Todos estamos cientes de que a carta não podia ser expedida com esse selo. E não me parece que esta conclusão venha a sofrer contradita.

Longe de mim, no entanto, o propósito de ser demasiado severo ou rígido. Ambas estas reacções não se ajustam ao mínimo de indulgência a ter com tão equilibrado e sensato Tribunal, como é esse onde V. Ex.ª está. Indulgência de que é plenamente merecedor por tantas páginas de um heroísmo gravado a ouro nos anais judiciários, e que a posteridade celebrará. Fixemos somente a nossa atenção nesta parcimónia de esforços e de meios pecuniários, a todos os títulos digna dos maiores encómios. Assim, se a lei prescreve isto e a economia manda aquilo, é este o caminho a seguir porque a lei foi dada para a saúde dos povos (no que se inclui o bem-estar financeiro), e não o contrário. A qualquer preço? Ocupem-se os moralistas com tais bizantinices, e passemos ao que nos há-de interessar.

Deixando a carta a perder de vista, elevam-se o que podemos chamar, com bastante propriedade, uns cumes de apuro jurídico. Debruço-me sobre o  primeiro, escolhido ao acaso já que por alguma ponta se havia de começar e também porque toda a análise vai recair sobre matéria da mesma dimensão:

Um arguido ia responder noutro tribunal desse núcleo, que V. Ex.ª já enchia com a resplandecente presença de um sábio do Direito e, em especial, valorizava com a sua acção benfazeja. Que havia de lembrar àquele arguido? --- Nada mais, nada menos que isto: pedir que lhe custeassem as despesas da deslocação, sem o que não poderia estar presente em juízo. Em termos resumidos: uma caprichosa e desmesurada pretensão, está bem de ver!

Para quê tantas cautelas com os que prevaricam, quando é certo que todo o arguido se presume culpado até sentença transitada em julgado que o considere inocente? Não é exactamente isto o que a lei diz; é até o inverso. Porém, que montam umas insignificantes minúcias se, estando como estamos em aflitiva maré de austeridade económica, há razões de política financeira, cuja observância é indefectível e que impõem o mais estrito cuidado nos gastos públicos? E, quando tudo se processa dentro de uma lisura exemplar como é timbre de V. Ex.ª, porque havemos de nos afligir?

V. Ex.ª, contudo, não se deixou enlear. Como integérrimo Magistrado que é, V. Ex.ª contrapôs àquele atrevidíssimo arguido esta única exigência: a de ficar obrigado a fazer prova do pagamento do título de transporte que lhe permitiria estar em Tribunal, se queria alcançar o êxito pretendido. Exigência, disse eu? Disse mal porque V. Ex.ª não exige, V. Ex.ª pede! A sua elegância de maneiras, escorada numa invulgar nobreza de sentimentos, segredou-lhe há muito que a autoridade, a que intrinsecamente o é, não se afirma pela via da arrogância e da aspereza. Alguém ousará negar que a tal exigência que afinal foi um pedido bem rogado ou esse pedido que nada exigiu é sinal de uma apreciável prudência e do mais fino sentido de quem busca a ventura da comunidade? É ou não a medida acertada de um varão cuja inclinação à poupança é indesmentível?

Porém, uma dificuldade se ergueu qual obstáculo intransponível: como iria o requerente, tão falto de meios se encontrava, tanto que pediu ao Tribunal o custeio das despesas para a viagem, como iria, repito, solver do seu próprio bolso a importância da  passagem aérea?

V. Ex.ª não ignorará certamente o desastrado regime que, há anos, se observava quanto a advogados nomeados dentro do estatuído no âmbito da defesa oficiosa. Aí, o defensor nomeado só era remunerado se o seu representado saísse condenado. Refiro-me ao domínio do processo criminal e é de um processo-crime que agora se fala. Não sei como era no cível. V. Ex.ª está perfeitamente informado de que eu sou uma personalidade talhada para o crime. Ora sucede que esse estilo era deveras chocante e, muito razoavelmente, levantava as mais sérias e legítimas suspeições. Com efeito, era a tentação do esforço mínimo que bastasse a livrar o defensor de acusação por incúria grave.

Mas que estou eu para aqui discorrendo? Então não vejo a distância que separa qualquer advogado da pessoa de V. Ex.ª? Será possível que eu não compreenda  que dessa posição dúbia só tinha que limpar-se a classe de advogados? Esse risco não se verifica convosco, ilustres garnachas! Aplicais sempre a Justiça devida. Obviamente, sois uma casta diferente, impoluta, tão pura como o são as criancinhas de berço. E, no meio dessa casta, é V. Ex.ª a pérola de mais extremado valor. Carácter diamantino, vertical na sua imparcialidade, um poço de ciência tantas vezes provada, tudo isto se reúne na pessoa de V. Ex.ª em subido grau e harmonia sem par!

De todos os modos, é visível que o decidido por V. Ex.ª a respeito  do arguido, tal como se vem tratando, foi ditado de coração aberto e, ao mesmo tempo, dominado por uma generosa preocupação na defesa dos interesses da Fazenda Nacional. Preocupação que obedeceu a um generoso impulso, insisto, e é testemunho fiel do altruísmo e da estirpe moral do autor. Nem de resto outra coisa era de esperar!

V. Ex.ª, é verdade, podia ter indeferido o pedido, o que se torna sempre desagradável para quem se distingue como um pilar de cortesia e urbanidade. Não agindo assim, V. Ex.ª situou-se ao centro. Atitude de uma ponderada moderação, que produz resultados muito profícuos naquilo em que se faz sentir, conforme de todos é sobejamente conhecido. Restava, é verdade, o precedente adoptado quando, noutro processo, foi requerido a V. Ex.ª a constituição de tribunal de júri, requerimento sobre o qual não recaiu qualquer despacho --- nem deferido nem indeferido. Mas para quê, afinal? O indeferimento seria um acto incivil e V. Ex.ª nunca incorre em defeito de cortesia, como é notório e eu acabei de referir. Por outro lado, desse jeito poupou-se bom dinheiro ao erário, com o que se evitou a probabilidade de ele vir a ser consumido no vício e na dissipação. É forçoso confessar que o interessado em ver jurados no julgamento, a que ia ser submetido, tem artes malignas de se fazer passar por pedinte, sobretudo se tomarmos em conta que agora ele está à beira de fartar-se com a opulenta pensão de €183, 84 mensais.

Não cabem aqui duas opiniões: atribuir aquela quantia a alguém, é escarnecer da miséria quando tanta gente vive abaixo do que é o limiar da pobreza. Para cúmulo da mais elementar decência,  é com esta copiosa fortuna, à porta, que ele não paga custas, e anda a carpir-se por todos os cantos. Olhai o grosso escândalo! Isto não pode ser escamoteado. É o desbarato escancarado das reservas do tesouro nacional. Depois, surpreendem-se que venham as jeremiadas do costume. Como querem que as coisas funcionem se estes desmandos não são travados? Por isto é que algo vai mal nos domínios da Justiça. Coitados daqueles Juízes e Procuradores que se esfalfam por levar à boca de cada anónimo a mealha de pão que negam a si próprios. É ponto líquido que V. Ex.ª ocupa lugar primacial entre tantos abnegados!

Sopraram-me, em segredo, que o Governo estuda seriamente a possibilidade de levar à mesa do COI a proposta de incluir uma disciplina nova entre as já existentes --- chamar-se-á aforro judiciário. Aqui é que não sei se V. Ex.ª logrará classificar-se. O Tribunal, onde nos deslumbra com a imensa sabedoria que não hesita em derramar, não é dos maiores de Portugal e mesmo estes também se encontram longe, bastante longe, de muitos do estrangeiro. Do que não duvido é que a converter-se a gestão dos cofres judiciários em modalidade de um novo tipo de olimpíadas --- as olimpíadas morais --- V. Ex.ª ganharia infalivelmente a medalha de ouro na disciplina de honestidade.

Concluindo:

V. Ex.ª é, como antes eu já disse, um composto de excelsas qualidades. Honradez inconcussa, pureza e rectidão de juízos, saber profundo, todas estas virtudes fazem de V. Ex.ª um magistrado sublime que empana o fulgor dos históricos mestres das velhas escolas de Itália. Deve estar feliz. Sinceramente, não vejo a que mais pode V. Ex.ª aspirar.

Uma sombra, apenas uma, tolda a ínclita figura de V. Ex.ª e procura estender-se de modo a cobrir aura de tanto esplendor. Fala-se no poder do cifrão, de mistura com favores e conveniências sociais. Más línguas, com certeza!

Eu não abundo nessas conversas de soalheiro. Sigo, como Mestre inolvidável, o enorme Luís Osório, o qual admitia em processo penal que, a chamar parte ao MP, se impunha não esquecer «que se trata de uma parte imparcial». Pois agora, para desgraça da res publica, há Magistrados formalmente imparciais e materialmente parciais porque, sem margem de dúvida, não se distinguem das partes.

Apresenta-se com uma transparência cristalina o facto de não se encontrar V. Ex.ª nesse número que cresce dia a dia. Também não participa nas excepções cada vez mais reduzidas. Onde podemos, pois, deleitar-nos com a visão magnífica de V. Ex.ª? É tarefa dificílima ou até de realização impossível dar com esse ponto: V. Ex.ª paira acima daquelas rasteiras classificações, muito acima mesmo. Tanto que só não se compreende como é que V. Ex.ª ainda não se sumiu!   

Por isso é que, fatalidade irremovível, não consigo tocar os píncaros a que remonta a glória de V. Ex.ª Estão demasiado longe para que eu, pobre mortal, possa chegar até eles. Pelo que V. Ex.ª, com a assombrosa inteligência que o caracteriza, a coerência lógica que informa os seus actos e a caridade que põe em tudo, há-de entender o meu aperto e, consequentemente, perdoar que não me assine admirador!

Joaquim Maria Cymbron

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

TRIBUNAL INDIGENTE


Há um tribunal português, pelo menos um, que não tem dinheiro suficiente para registar o correio.
A lei sujeita as notificações processuais a formalismos mais ou menos rígidos. Mas também se sabe que ad impossibilia nemo tenetur. Portanto, o que passa dificuldades não tem outro remédio que não seja o de apertar o cinto. Pode ser que até ganhe em elegância.
Porém, se é tal o extremo de apuro financeiro em que vive, ao mesmo tempo que lhe lembramos a via de uma política de austeridade, também lhe recomendamos:

·    Candidate-se à riquíssima fonte que mana do RSI;
·    Junte-lhe a não menos farta pensão social de velhice;
·   Acrescente-lhe a generosa fatia que cabe a cada um dos antigos combatentes;
· Não deixe para trás o complemento solidário, esse filão de sonho que é atribuído aos idosos (deve ser uma casta distinta dos que entraram na velhice, mas isso não tem de nos preocupar).

Está quase pronto a servir:
Cubra tudo com muito molho de estupidez; tempere com maldade impudica; e leve à mesa sem vacilar --- eis o crime consumado!
Joaquim Maria Cymbron

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

O FADISTA DO BAIRRO ALTO

 
Vede como as coisas são! Na minha caixa de correio, encontrei um sobrescrito que, por fora, trazia o meu nome completo. Do lado externo, mais nada: nem remetente nem franquia.
Claro que o abri, tendo visto que, numa folha dobrada, vinham uns versos. E porque o seu conteúdo apresenta uma curiosa identidade com os meus últimos ataques a um M.mo Juiz de Direito, aqui publico aqueles versos anónimos sob o mesmo título que a referida folha oferecia.


Ouve, ó Chico da Lixeira:
És um forte chicaneiro!
Limpaste o fundo à sopeira
Como faz um lambareiro.

O outro queria um fumeiro,
Vá lá buscá-lo à estrumeira!
Se se foi o derradeiro,
Fica cheiinha a carteira!

Anda, anda, ó caminheiro,
Pois a vida é passageira.
Quem te segue na carreira,
Onde és um feiticeiro,
Contigo aprende o Direito
Mais torto que há-de ser feito!