Povo
algum consegue sobreviver sem a existência de órgãos que tenham por missão
aplicar a lei. Os tribunais são o derradeiro refúgio de uma vida que se
pretende socialmente disciplinada. Só uma grosseiríssima inconsciência ou uma
hipocrisia despudorada podem sustentar que vale mais a paz que a polémica,
fecho de um discurso que o espírito da subversão desde sempre alimentou. A paz,
desligada da justiça, não é mais do que um pretenso bem que nos conduz a pontos
de saída impossível.
É precária a justiça dos homens? Sem dúvida que sim. Mas é a que podemos
alcançar neste mundo e é certamente muito melhor que a paz a todo o custo. Essa
paz confunde-se com a paz dos cemitérios, onde ninguém briga porque ali é um
campo de mortos.
Lê-se, nos sagrados Evangelhos: «Nolite arbitrari quia pacem uenerim
mittere in terram; non ueni pacem mittere sed gladium.»1 Ou «putatis
quia pacem ueni dare in terram? Non, dico uobis, sed separationem:»2 Mais recentemente, dentro
de uma linha milenária fundada na lei natural, a Igreja fala-nos dos casos em
que a rebelião e a guerra são lícitas sob o ponto de vista ético.3 E
João Paulo II deixou claro, numa das primeiras encíclicas do seu longo
pontificado, que a obrigação de perdoar não exclui o direito a uma justa
reparação pela ofensa recebida4. Aquele Papa também nos lembrou que
«a verdadeira paz é fruto da justiça.»5
Não existe conflito entre perdão e reparação. «(...): sine sanguinis
effusione non fit remissio», são palavras do Apóstolo dos gentios.6
E a antiga lei diz que «sanguis pro animae piaculo sit.»7
Para o orbe católico, ao qual tenho a graça de pertencer, o excelso mistério da
redenção é a coroa de tudo isto: Deus viu, no sacrifício cruento de Seu muito
amado Filho, o meio mais adequado de Lhe ser dada satisfação pelos nossos
pecados.
Com
a sua fina e penetrante capacidade de análise, escreveu S.to
Agostinho que «pax omnium rerum, tranquillitas ordinis.».8
Mas de uma ordem alicerçada na justiça porque, de outra maneira, nem seria paz
essa tranquilidade da ordem.
Sendo
a paz fruto da justiça e não o contrário, torna-se evidente que é lícito o
recurso aos tribunais para assegurar a reposição dos nossos direitos e, por
essa via, atingir a paz genuína. Para isto, é preciso que os tribunais obedeçam
à sua vocação: ser templos de justiça. E isso, infelizmente, está muito longe
de acontecer.
Quando
os cidadãos buscam salvação, batendo às portas dos tribunais, têm de encontrar
resposta. Se o resultado for atrasos, incidentes, custas, denegação de justiça
e prevaricação, enfim, um cortejo de factos e uma sucessão de comportamentos
idóneos a provocar-lhes desgaste físico, psíquico e económico, não teremos de
nos espantar que o final seja o menos apropriado à prossecução de uma sadia
convivência social.
Há
processos que são uns simulacros de justiça, autênticas farsas. Mas não são
farsas de pátio das comédias; são dramas que podem acabar em tragédia! Se isso
acontecer, quem é culpado?
Acabei
de dizer que os tribunais deviam ser templos de justiça. Dentro deles, os
magistrados são inquestionavelmente os sacerdotes desse culto. Todavia, em
maior ou menor grau, todos somos agentes de justiça.
Por isso, volto a perguntar --- quem é culpado? Pois bem: criminosos são todos
aqueles que, com a sua maldade, a sua falta de integridade e a sua cupidez, dão
causa à desgraça. Mas, concretizando melhor, quem são eles, afinal? --- São os
litigantes que, depois de lesarem porfiadamente a parte contrária, falidos de
brios e de honra, se lhe opõem, valendo-se de todos os expedientes da má fé
substancial e instrumental; são os advogados que os patrocinam, desprovidos de
escrúpulos e que tudo enredam da forma mais torpe; e, sobretudo, porque detêm
poder soberano, são aqueles magistrados que, prazenteiros e complacentes, vão
olhando para tudo isto, deixando correr o mal, quando não o provocam
directamente, alguns por inépcia e outros com dolo. É toda esta gente,
mergulhada num mar de corrupção, a autora da vergonhosa iniquidade que tantas
vezes se observa onde só era de esperar lisura e rectidão.
«Mira que el que busca
lo imposible, es justo que lo posible
se le niegue.» Esta máxima notável
leva a assinatura de Cervantes, quando numa obra-prima da literatura universal,
que leva o seu selo,9 o soldado de Lepanto nos conta a insensatez do
curioso impertinente. A história merece registo porque é modelar. Ei-la:
Anselmo
havia desposado Camila, mulher formosíssima e virtuosa. Porém, acometido por
uma doentia indiscrição, resolve pôr à prova a fidelidade daquela com quem
casara. Para o efeito, convida Lotário, amigo do peito, a alojar-se em sua
casa, enquanto ele está fora. E pede-lhe que comece a cortejar Camila. Lotário
procurou fugir a este desatino, mas acabou por aceitar, muito rogado por
Anselmo. Camila mantém-se invulnerável aos galanteios de Lotário. Anselmo,
porém, insta com o amigo para que se esmere mais nos clássicos processos de
sedução. Por fim, teve o que provocara: Camila cai nos braços de Lotário.
Anselmo
quis a certeza de uma lealdade impossível de ter. Esta demência caprichosa
impediu-o de tocar a que era possível conseguir. Mutatis mutandis,
assim agem os falsificadores da justiça: acometidos de vesânia criminosa, põem
à prova a paciência do mais santo. Não estranhem as consequências!
A
anomia que vai crescendo na sociedade portuguesa, não tanto pela ausência de
leis como por falta de uma correcta aplicação dessas mesmas leis, arrastará
necessariamente à prática da autotutela dos direitos.
A
autotutela não é legítima porque uns códigos jurídicos a prevêem. É a lei que a
consagra por descobrir nela um imperativo de direito natural. Torna-se escusado
contrariar este princípio. Nem as mais duras penas o conseguirão. Melhor fora
que os órgãos jurisdicionais dirigissem a repressão no sentido de evitar que,
seja quem for, chegue ao extremo de recorrer a este meio de defesa.
Quando
a autotutela dos direitos, de defesa extraordinária que é, se converte num
procedimento corriqueiro, isso revela a impotência do poder público em garantir
as liberdades civis. Não é saudável pelo perigo, que há, de se cair na
anarquia. E a anarquia é a pior de todas as tiranias --- é a tirania omnium
erga omnes!
05NOV07 (data originária)
Joaquim
Maria Cymbron
__________________________________________
- Mt. 10, 34.
- Lc. 12, 51.
- Catecismo da Igreja Católica, §§ 2.243 e 2.309.
- Diues in Misericordia, VII, 14.
- Mensagem, 3 (Dia Mundial da Paz).
- Hebr. 9, 22.
- Lev. 17, 11.
- De Ciuitate Dei XIX, 13, 1.
- Don Quijote de la Mancha, I, capítulos XXXIII-XXXV.
JMC
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