Toreador

Não é difícil perceber a razão pela qual se insere, aqui, uma das mais famosas árias do panorama operático --- https://www.youtube.com/watch?v=fOxDzDyLEMQ

sexta-feira, 30 de maio de 2008

O DRAMA JUDICIÁRIO


Povo algum consegue sobreviver sem a existência de órgãos que tenham por missão aplicar a lei. Os tribunais são o derradeiro refúgio de uma vida que se pretende socialmente disciplinada. Só uma grosseiríssima inconsciência ou uma hipocrisia despudorada podem sustentar que vale mais a paz que a polémica, fecho de um discurso que o espírito da subversão desde sempre alimentou. A paz, desligada da justiça, não é mais do que um pretenso bem que nos conduz a pontos de saída impossível.

É precária a justiça dos homens? Sem dúvida que sim. Mas é a que podemos alcançar neste mundo e é certamente muito melhor que a paz a todo o custo. Essa paz confunde-se com a paz dos cemitérios, onde ninguém briga porque ali é um campo de mortos.

Lê-se, nos sagrados Evangelhos: «Nolite arbitrari quia pacem uenerim mittere in terram; non ueni pacem mittere sed gladium1 Ou «putatis quia pacem ueni dare in terram? Non, dico uobis, sed separationem:»2 Mais recentemente, dentro de uma linha milenária fundada na lei natural, a Igreja fala-nos dos casos em que a rebelião e a guerra são lícitas sob o ponto de vista ético.3 E João Paulo II deixou claro, numa das primeiras encíclicas do seu longo pontificado, que a obrigação de perdoar não exclui o direito a uma justa reparação pela ofensa recebida4. Aquele Papa também nos lembrou que «a verdadeira paz é fruto da justiça.»5

Não existe conflito entre perdão e reparação. «(...): sine sanguinis effusione non fit remissio», são palavras do Apóstolo dos gentios.6 E a antiga lei diz que «sanguis pro animae piaculo sit7 Para o orbe católico, ao qual tenho a graça de pertencer, o excelso mistério da redenção é a coroa de tudo isto: Deus viu, no sacrifício cruento de Seu muito amado Filho, o meio mais adequado de Lhe ser dada satisfação pelos nossos pecados.

Com a sua fina e penetrante capacidade de análise, escreveu S.to Agostinho que «pax omnium rerum, tranquillitas ordinis.».8 Mas de uma ordem alicerçada na justiça porque, de outra maneira, nem seria paz essa tranquilidade da ordem.

Sendo a paz fruto da justiça e não o contrário, torna-se evidente que é lícito o recurso aos tribunais para assegurar a reposição dos nossos direitos e, por essa via, atingir a paz genuína. Para isto, é preciso que os tribunais obedeçam à sua vocação: ser templos de justiça. E isso, infelizmente, está muito longe de acontecer.

Quando os cidadãos buscam salvação, batendo às portas dos tribunais, têm de encontrar resposta. Se o resultado for atrasos, incidentes, custas, denegação de justiça e prevaricação, enfim, um cortejo de factos e uma sucessão de comportamentos idóneos a provocar-lhes desgaste físico, psíquico e económico, não teremos de nos espantar que o final seja o menos apropriado à prossecução de uma sadia convivência social.

Há processos que são uns simulacros de justiça, autênticas farsas. Mas não são farsas de pátio das comédias; são dramas que podem acabar em tragédia! Se isso acontecer, quem é culpado?

Acabei de dizer que os tribunais deviam ser templos de justiça. Dentro deles, os magistrados são inquestionavelmente os sacerdotes desse culto. Todavia, em maior ou menor grau, todos somos agentes de justiça.

Por isso, volto a perguntar --- quem é culpado? Pois bem: criminosos são todos aqueles que, com a sua maldade, a sua falta de integridade e a sua cupidez, dão causa à desgraça. Mas, concretizando melhor, quem são eles, afinal? --- São os litigantes que, depois de lesarem porfiadamente a parte contrária, falidos de brios e de honra, se lhe opõem, valendo-se de todos os expedientes da má fé substancial e instrumental; são os advogados que os patrocinam, desprovidos de escrúpulos e que tudo enredam da forma mais torpe; e, sobretudo, porque detêm poder soberano, são aqueles magistrados que, prazenteiros e complacentes, vão olhando para tudo isto, deixando correr o mal, quando não o provocam directamente, alguns por inépcia e outros com dolo. É toda esta gente, mergulhada num mar de corrupção, a autora da vergonhosa iniquidade que tantas vezes se observa onde só era de esperar lisura e rectidão.

«Mira que el que busca lo imposible, es justo que lo posible se le niegueEsta máxima notável leva a assinatura de Cervantes, quando numa obra-prima da literatura universal, que leva o seu selo,9 o soldado de Lepanto nos conta a insensatez do curioso impertinente. A história merece registo porque é modelar. Ei-la:

Anselmo havia desposado Camila, mulher formosíssima e virtuosa. Porém, acometido por uma doentia indiscrição, resolve pôr à prova a fidelidade daquela com quem casara. Para o efeito, convida Lotário, amigo do peito, a alojar-se em sua casa, enquanto ele está fora. E pede-lhe que comece a cortejar Camila. Lotário procurou fugir a este desatino, mas acabou por aceitar, muito rogado por Anselmo. Camila mantém-se invulnerável aos galanteios de Lotário. Anselmo, porém, insta com o amigo para que se esmere mais nos clássicos processos de sedução. Por fim, teve o que provocara: Camila cai nos braços de Lotário.

Anselmo quis a certeza de uma lealdade impossível de ter. Esta demência caprichosa impediu-o de tocar a que era possível conseguir. Mutatis mutandis, assim agem os falsificadores da justiça: acometidos de vesânia criminosa, põem à prova a paciência do mais santo. Não estranhem as consequências!

A anomia que vai crescendo na sociedade portuguesa, não tanto pela ausência de leis como por falta de uma correcta aplicação dessas mesmas leis, arrastará necessariamente à prática da autotutela dos direitos.

A autotutela não é legítima porque uns códigos jurídicos a prevêem. É a lei que a consagra por descobrir nela um imperativo de direito natural. Torna-se escusado contrariar este princípio. Nem as mais duras penas o conseguirão. Melhor fora que os órgãos jurisdicionais dirigissem a repressão no sentido de evitar que, seja quem for, chegue ao extremo de recorrer a este meio de defesa.

Quando a autotutela dos direitos, de defesa extraordinária que é, se converte num procedimento corriqueiro, isso revela a impotência do poder público em garantir as liberdades civis. Não é saudável pelo perigo, que há, de se cair na anarquia. E a anarquia é a pior de todas as tiranias --- é a tirania omnium erga omnes!


05NOV07 (data originária)


Joaquim Maria Cymbron
 
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  1. Mt. 10, 34.
  2. Lc. 12, 51.
  3. Catecismo da Igreja Católica, §§ 2.243 e 2.309.
  4. Diues in Misericordia, VII, 14.
  5. Mensagem, 3 (Dia Mundial da Paz).
  6. Hebr. 9, 22.
  7. Lev. 17, 11.
  8. De Ciuitate Dei XIX, 13, 1.
  9. Don Quijote de la Mancha, I, capítulos XXXIII-XXXV.
JMC

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