Coimbra, 23.01.06
Ex.mo Sr.:
Eu esperava ardentemente a hora em que, livre de entraves, pudesse dizer o que lhe faz falta ouvir.
Agora, o assunto é entre nós os dois: de um lado, eu; e, do outro, alguém que não aparece na veste de magistrado e a quem me dirijo fora dessas funções e sem ser por causa delas.
A queixa desastrada que apresentou contra mim --- «queixo-me de ti, porque te queixaste de mim» ---, queixa à qual, se fossem iguais os nossos conceitos, eu podia opor outra --- «queixo-me de ti, porque te queixaste de mim, porque me queixei de ti» --- num processo indefinido, absurdo completo, aberração jurídica, essa queixa teve o mérito, único mérito, de revelar a sua inclinação para a psicanálise. Inclinação marcadamente infeliz, porque quem resolve trilhar essas veredas, sujeita-se a acabar como paciente, onde se julgava médico.
Dir-lhe-ei, pois:
Pratica o mergulho desportivo, não é assim? Sabe o que isso significa, no mundo freudiano? Para o caso de não ter estudado a matéria e de ninguém o ter informado, não me custa nada comunicar-lhe que tal escolha é sintoma de nostalgia da paz uterina.
Ora, ainda dentro da mesma escola, parece que essa nostalgia é vivida por todos nós, em maior ou menor grau e sem que disso tenhamos uma clara consciência. Simplesmente, há situações onde já se descobre uma manifestação doentia.
O desejo frequente de imersão num líquido, é um dos sinais mais eloquentes da existência de problemas clínicos. E se a água escolhida for a do mar, então, isso é ainda mais concludente, porque este elemento se aproxima bastante do líquido amniótico, lembrando a vida intrauterina, a quem nele mergulha.
Várias causas se perfilam como resposta. Mas há uma, que costuma ser apontada como a mais comum --- a fixação obsessiva à mãe. O filho teve uma infância que foge aos padrões correntes e, em virtude desse acontecimento menos normal, refugia-se na memória inconsciente do tempo em que se sentia bem, aconchegado num lugar macio e de agradável temperatura.
Uma mãe demasiado possessiva, ríspida, desleixada ou de maus costumes, tudo isto pode dar origem a essa fixação mórbida. O filho quer, então, recordar o que de bom a mãe lhe deu, enquanto ele, simples feto, não se inteirava da real dimensão daquela que o trouxe no ventre.
Outro quadro, de iguais consequências, é o da mãe solteira. Se isto se verifica num meio humano de forte religiosidade e de raiz sociológica bastante conservadora, a nostalgia da paz uterina torna-se ainda mais aguda. E quando o filho, assim concebido, é rejeitado pelo pai, aí os contornos ganham um intenso dramatismo. Desenvolve-se, então, um processo mental em que a imagem da mãe passa por uma transformação ideal, saindo quase depurada de todos os vícios. É a via encontrada para compensá-la do abandono que atingiu ambos, e que o filho sente como um gesto cobarde que o penaliza e que gera nele uma enorme revolta.
Resta-me ainda acrescentar que as hipóteses avançadas não têm de existir separadamente. Às vezes, assiste-se ao concurso de umas e outras.
Deixo-lhe, aqui, um trabalho de introspecção, o qual, a avaliar pelos precedentes, tenho sérias dúvidas se será capaz de levar a cabo. Mas far-lhe-ia um certo bem, creia, olhar-se ao espelho e ver dentro de si. Menos presunção e um discurso mais verdadeiro, é da mais elementar higiene!
Sem outro assunto,
(A carta levava a minha assinatura)
Obs.: O magistrado aqui visado dirigiu um inquérito aberto por queixa que eu apresentei e que veio a constituir o P. 443/02.5 PBPDL. Nestes autos, houve uma sucessão de eventos criminosos que levaram a que eu participasse dele. A reacção, que teve aquele magistrado, foi ripostar com uma queixa contra mim, por considerar que houve calúnia da minha parte, quando o denunciei. No entanto, o MP mandou que essa queixa fosse arquivada por estar desprovida de qualquer fundamento: às vezes, o bom senso triunfa!
Tudo junto, determinou a carta aqui publicada.
Tudo junto, determinou a carta aqui publicada.
18NOV07 (data originária)
Joaquim Maria Cymbron
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