Toreador

Não é difícil perceber a razão pela qual se insere, aqui, uma das mais famosas árias do panorama operático --- https://www.youtube.com/watch?v=fOxDzDyLEMQ

sábado, 7 de junho de 2008

O BOBO DA CORTE


Quem é bobo e em que corte?

A assimilação entre corte de um soberano e tribunais é comum a várias línguas, entre elas, a nossa. Provém do tempo em que os Reis, no exercício do governo dos seus estados e senhorios, guardavam para eles, zelosamente, a prerrogativa de serem a última instância na administração da justiça.

A corte, como lugar onde se aplicava o Direito, foi uma realidade tão forte que os nossos monarcas, ao referir-se à Casa da Suplicação, lhe chamavam «a nossa corte», conforme rezam as antigas Ordenações do Reino. Essa ligação desfez-se e, no meio de nós, o termo corte, como equivalente a tribunal, apenas se manteve na Índia até mais tarde.

Respondendo à pergunta inicial, direi que a corte é o Tribunal Judicial de Ponta Delgada, o qual, à semelhança das cortes reais da Idade Média, conserva dentro dos seus muros um jogral conhecido como conde de Benavente.

As suas truanices não valem os anedotários clássicos vividos na barra dos tribunais, porque lhes falta a graça sadia que recheava aqueles. O que se vê é o ridículo tremendo a cobrir o bufão que as solta.

São infindáveis as suas chocarrices. E hão-de prosseguir enquanto ele, indolentemente, for arrastando a sua massa enorme pelas salas do pretório ilhéu. O bobo, entrajado nas roupagens de advogado, nem sabe Direito, nem se rala muito com isso. O que diz agrada à maioria da corte e isso basta-lhe. É um arlequim mal vestido, mas junto de alguns passa por sisudo.

Numa terra que foi berço de Frutuoso, discípulo de Soto nos claustros universitários de Salamanca, o qual pedia tempo para preparar as respostas às questões teológicas que o micaelense lhe colocava; a terra que deitou Bento de Góis, explorador e sábio, pois não se atravessa meia Ásia sem possuir largos conhecimentos científicos; a terra, enfim, onde nasceu e morreu Antero, o mestre genial do soneto, o artista da palavra que deslumbrou Michelet, a ponto de este dizer que Portugal continuava a ser um grande país vivo se lhe restassem quatro ou cinco homens como o autor das Odes Modernas, nessa formosíssima terra, a aura, que envolve o palhaço de meia-tigela, revolta e entristece porque é sinal indesmentível de impressionante declínio da cultura.

O elogio feito pelo historiador francês ao infeliz Antero terá sido mais um arroubo romântico de Michelet? Não sei. Do que estou certo é que a imagem de probidade e valia criada à volta deste conde de opereta, se não for uma acintosa mentira, é no mínimo um desgraçado equívoco.


13ABR08 (data originária)


Joaquim Maria Cymbron


Obs.: O bobo, no presente texto, é Carlos Melo Bento, várias vezes referido ao longo deste blogue, tendo recebido noutra peça a classificação que lhe cabe com maior propriedade. Sem esquecer mais esta!

JMC 

O DELÍRIO À SOLTA


Conforme se previa, já recaiu sentença sobre o caso apreciado no P. 408/03.0 TAPDL, que corre termos no 5.º Juízo do Tribunal Judicial de Ponta Delgada.

Vai ser objecto de recurso, o que me impede de a comentar. Eu entendo que, nalguns casos, há razões que obrigam ao silêncio. É de toda a conveniência deixar os tribunais julgarem antes que a discussão baixe à praça pública.

Assim vejo eu o exercício da judicatura, à qual não basta a nota de independente dada pela lei, para decidir livre de influências. O meu respeito pelo poder judicial, está em proporção directa com o desprezo que sinto por alguns dos seus titulares. A esses, a beca não lhes cai bem: melhor fora que lhes chamássemos arlequins enfeitados.

Quando chegar a altura própria, regressarei ao processo aqui tratado. Até lá, irá seguir-se notícia de outros atropelos judiciários.

11FEV08 (data originária)


JMC

quinta-feira, 5 de junho de 2008

MISTÉRIO DE UMA MORTE OU UM FILHO DESNATURADO


Há mais de sessenta anos, uma mulher, vivendo a força da juventude e do seu amor, embarcava no paquete Serpa Pinto, que estava fundeado no porto de Ponta Delgada.
O destino era Lisboa, onde a esperava o pai dos seus filhos, duas crianças de tenra idade que viajavam com ela. Levava o propósito de se unir àquele homem pelos laços do sagrado matrimónio, e fixarem-se depois em Angola.
A infeliz não conseguiu realizar este sonho. Morre com o vapor a navegar e o corpo é lançado ao mar.
Na altura, o Serpa Pinto era o melhor navio de passageiros da nossa marinha mercante. A sua lotação abrangia médico e enfermeiro. A bordo, está apurado que ia tropa. E fala-se num efectivo de dois batalhões do Exército, que regressavam ao continente, terminada a sua comissão nos Açores. Ora as unidades militares daquela dimensão têm corpo clínico.
Houve autópsia? --- Não se sabe. O certo é que, nas Conservatórias, nem registo do seu óbito aparece.
Toda a história, que rodeia o fim desta desgraçada, está coberta por um véu muito espesso. Foi natural a morte daquela mulher? --- Pelos indícios, que até agora colhi, é perfeitamente legítimo concluir que ela morreu violentamente e que a causa mortis não terá sido acidental. Daí, o interesse em fazer desaparecer o corpo.
De resto, outra dúvida terrível se levanta: oficialmente, ela terá embarcado?
Algo me diz que, ao subir as escadas do portaló, a pobre carregava já a sentença da morte que veio a sofrer.

 
P. 408/03.0 TADL

 
ALEGAÇÕES APRESENTADAS EM JUÍZO
 
Venho perante este Tribunal, porque aparentemente ofendi o assistente na sua honra e respondo, ainda, como presumido autor de um crime de ameaças.

O assistente, num completo desvario e, ao mesmo tempo, com algum sabor patético, sustenta que me estou preparando para violar gravemente a lei, agredindo-o até à morte (fls. 110 dos autos). Imagine-se, só! Uma morte assim infligida assume proporções da mais fria e requintada crueldade.

Sou, com certeza, um malvado sem entranhas e totalmente desprovido de sentimentos humanos. Não vou desferir, sob o impulso de ira cega e desmedida, um golpe mortal; hei-de comprazer-me num processo demorado, gozando a lenta agonia que precederá o estertor final do assistente. Isto até arrepia!

Mas, afinal, onde se encontra escondido esse pérfido plano? Numas expressões que o assistente alinhou, uma delas sem nenhuma preocupação de rigor textual, se é que isso não foi deliberadamente querido. Tão insubsistentes eram essas expressões que até o Ex.mo Magistrado do MP as não levou em conta (fls. 100 e s. dos autos), vindo só a acusar depois «no estrito dever de obediência hierárquica» (fls. 124 e s. dos autos), e limitando-se a imputar-me, muito latamente, a prática de um crime de ameaças (ib.). E a decisão instrutória, de forma igualmente imprecisa, veio confirmar esta acusação. Motivo pelo qual desenvolvo a minha defesa começando por impugnar este ataque, que é indisputavelmente o mais grave.

Sou, pois, acusado de ameaçar de morte o assistente. Santo Deus! Onde está essa ameaça? Não há, em todo o texto da carta nada que autorize essa conclusão. Só o delírio do assistente foi capaz de descortinar tal propósito.

A acusação particular entrou neste Tribunal em 22SET04. É uma deturpação grosseiríssima da letra e do espírito da carta que remeti ao assistente. Lembro, entretanto, que essa carta foi escrita em 31JUL03 e o assistente continua a sua vida, dentro da normalidade para uma pessoa doente e com a sua idade. E se eu andasse, pelo menos desde então, possuído por um instinto homicida, não me faltaram ocasiões para já me ter cevado no sangue do assistente. A partir do envio da carta, vim a S. Miguel as vezes suficientes para o matar, se essa fosse a minha vontade.

Contesto, assim, a acusação de ameaça de morte, porque ela é perfeitamente descabida. Mas, se este Tribunal achar que essa acusação procede, seja-me permitido tecer umas breves considerações:

Duas são as vias pelas quais se pode chegar ao homicídio:

Assiste-se à primeira, quando uma pessoa, socorrendo-se ou não de qualquer meio letal, dá morte a outrem. A segunda ocorre sempre que, através de um comportamento activo ou omissivo, se leva alguém, pelo desespero, pela exasperação, pela exaustão económica ou ainda por outra causa, atípica mas relevante, se atira com essa vítima, para uma situação que pode ser mortal. E esta última via denuncia uma malvadez de índole muitíssimo maior porque há contumácia na sua execução.

Pergunto, pois:

Neste processo, quem pisa os trilhos de um homicídio planeado? --- Eu, ao dizer que, se o assistente persistisse no comportamento, que vinha e vem assumindo, e eu não pudesse, em tempo útil, aguardar remédio por parte dos órgãos coercivos normais, actuaria directamente, sem nunca esquecer o princípio da proporcionalidade (fls. 4 dos autos)? Ou o assistente, que teimosamente contribui para um quadro que me é hostil?

Recordo, mais uma vez: tanto se pode ser matador, quando se dispara um tiro, se enterra uma faca, se dá uma pancada, se propina veneno, como quando se tira o pão da boca a alguém. Shakespeare, numa das suas peças mais conhecidas --- The Merchant of Venice --- põe, na boca de uma das suas personagens, esta memorável sentença: «(...) you take my life/When you do take the means whereby I live.» (Op. cit., The Complete Works of William Shakespeare, Spring Books, 20th impression, 1981, Act IV, Scene I).

Por isso, volto a inquirir:

Quem é, aqui, o criminoso? --- Eu, que apenas preveni para um acontecimento futuro e incerto, ou o assistente que, in actu, me vinha e vem lesando porfiada e gravemente? Eu, que falei na hipótese remota de recorrer a meios, admitidos em direito, desde que observados todos os pressupostos legais, ou o assistente, há muito com uma atitude destrutiva e profundamente nefasta, que se esconde atrás de subterfúgios de duvidosa legalidade e, muito provavelmente, de nenhuma justiça?

Pelo que até agora expus, infere-se o seguinte:

Do meu lado, não sabia nem podia saber se acabaria por lançar mão de medidas mais extremas, e sempre desejei não ser levado a isso, como, de resto, sucedeu até ao presente; entretanto, o assistente deu a entender que era sua convicção, firme e segura, que eu o mataria. Repiso: não sei como foi possível tanta certeza, por parte do assistente, sobre o comportamento que eu iria adoptar, quando eu próprio desconhecia se viria a tomar alguma atitude. Não compreendo francamente o seu receio, a menos que tivesse o propósito de continuar, isoladamente ou acompanhado, numa via adequada a lançar-me na mais completa miséria, intervindo numa luta que lhe é estranha, conforme ele já tem dito, mas na qual contraditoriamente se foi imiscuindo.

E, não satisfeito com os prejuízos que me vem causando, os quais, diga-se de novo, fazem perigar a minha subsistência, o assistente ainda me acusou de ameaças contra os seus bens (fls. 109 dos autos). Não há, em toda a carta da minha autoria e da qual ele se socorreu para esta acção, uma única palavra que possa servir de suporte a esta acusação. Registe-se, aqui e apenas, o cinismo do assistente. É o retrato, a corpo inteiro, de quem faz o mal e a caramunha.

Isto, que não me parece ter justificação, explica-se, contudo, se nos lembrarmos que estamos diante de uma situação melindrosa, com a qual o assistente não sabe lidar. Ele intuiu que podia ser um dos vencidos, nas plúrimas batalhas judiciais, que se vêm desenrolando, se, pela asfixia económica, não conseguisse anular-me antes de os tribunais proferirem as suas sentenças. Por isso, com recusas e indefinições, foi precipitando a crise que me aflige.
 
Em suma e limitando-nos ao que, neste segmento da acusação, foi por mim anunciado:

Eu escrevi que, se o assistente teimasse em criar-me dificuldades, a ponto de me pôr em situação crítica, e, nesse meio tempo, os conflitos judiciais não estivessem resolvidos por parte dos órgãos institucionais, então, era natural que eu procedesse em conformidade com o instituto da autotutela dos direitos. A isto e apenas a isto se reduz a alegada ameaça por que respondo.

Mais tarde, já na decisão instrutória e para mostrar o critério que determina a idoneidade da ameaça, vem citado o conhecido penalista Taipa de Carvalho. É pena que a M.ma Juíza, autora dessa decisão, não tenha recuado na obra consultada. Porque, se o tivesse feito (e bastaria vir atrás umas escassas quatro páginas), deparava com o seguinte: «(...) o mal ameaçado tem de configurar, em si mesmo considerado, um facto ilícito típico (...). Escusado será dizer que não se verifica este elemento, quando o 'mal ameaçado' se refira e circunscreva a um contexto justificante: p. ex., A jura a B que, da próxima vez que este o agrida, reagirá à agressão, mesmo que o tenha de matar; com efeito, mesmo que o A dissesse que, se B o voltasse a agredir, o mataria (mesmo que tal não fosse indispensável para a sua defesa), deveria entender-se que esta ameaça não seria senão uma forma de dissuadir o agressor da repetição da agressão, sendo, portanto, socialmente adequada uma tal ameaça.» (Comentário Conimbricense do Código Penal, I, Coimbra Editora, 1999, pp. 344 e s.).

Reitero que não ameacei de morte o assistente. Tão-pouco fui ameaçado de morte por ele. Tenho sido, isso sim, vítima de actos que fazem perigar a minha sobrevivência. E, nesses actos, tomou e continua a tomar parte o assistente. Mas se assim não for entendido, valha a lição de Taipa de Carvalho: se, no quadro acima descrito, é socialmente adequada a ameaça de A a B, por ser justificante o contexto a que se refere e circunscreve o 'mal ameaçado', com identidade de razão se há-de considerar justificante o cenário em que eu escrevi as pretensas ameaças de morte. O mal, que o assistente me causa, não é certamente inferior ao que resultaria de uma típica agressão física.

E ameaças de menor mal, houve? --- Para responder a esta interrogação, nada melhor que começar pela acusação do MP para acabar ligando-a à que foi formulada, no termo da instrução.

Vejamos, então, o que diz o MP. Antes, porém, e com todo o respeito, tenho de confessar que ler a primeira acusação deste órgão (fls. 101 e ss. dos autos) e olhar agora esta, é desconcertante. Todavia, bem ou mal deduzida, tenho uma acusação pela frente e, portanto, vou rebatê-la. Com alguma difIculdade, é certo, porque não tem a tarefa simplificada quem responde a argumentos privados de espontaneidade, uma vez que foram alinhados no estrito cumprimento do dever de obediência hierárquica e que, por isso mesmo, aparecem como argumentos de fraca ou mesmo de nula convicção. É uma acusação redigida em termos vagos e imprecisos, à qual respondo discorrendo com uma acentuada nota de generalidade e abstracção. Foi a forma que encontrei para abranger na minha contestação toda a acusação deduzida --- a que está expressa e a latente. Não significa isto que, por tal razão, eu deixe de tocar em pontos concretos da matéria de facto realmente vivida. De resto, com isto não faço mais do que o exigido a quem oferece uma refutação jurídica.

Assim, pergunto:

Estaria eu proibido de negar ao assistente o meu consentimento para a separação de empresas, objectivo que muito apeteceu e que não conseguiu porque esbarrou na minha resistência? É-me vedado o caminho de o denunciar pela eventual prática de um ilícito fiscal, como aconteceu em 25SET06? Não posso, por acaso, alhear-me de um negócio que ele continua a perseguir encarniçadamente e, com esse afastamento, anular os seus projectos de um dourado lucro, de que eu não veria migalha? Estou privado de lhe comunicar que exerceria o direito de preferência sobre umas quotas que ele queria transmitir para fora da sociedade, a que ambos pertencemos? E quando esta vontade o obriga a declarar um preço superior, com as consequentes repercussões fiscais, não é visível em tudo isto o castigo por mim anunciado (fls. 4)? Será muito difícil compreender que estão aqui os custos pelo comportamento do assistente junto de mim? E, consequentemente, não seria por isto que eu escrevi que agredir o mundo lhe iria sair caro (fls. 3 dos autos)? É que quem agride o mundo, agride-me a mim (já que todos fazemos parte do mundo) e quem me agride, anda mal se espera que eu fique de braços cruzados.

É, acaso, crime de ameaça avisar o assistente de que agravaria a sua situação, se não abandonasse o rumo até então seguido (fls. 4 dos autos)?

E para o caso de não me ser feita justiça em tempo útil, anunciar que passaria à acção directa, também não é permitido pela lei? --- Se o contrário se concluir, risque-se dos códigos uma das formas da autotutela dos direitos. Ou aceitemo-la com algumas reservas: está bem, a lei deixa, mas não é assim tão universal como parece, porque só funciona para alguns e não vale contra todos!

Saltei, intencionalmente, o castigo que o MP diz que eu reservo para o assistente. Adivinha-se terrível esse castigo. De tal modo, que a M.ma Juíza de Instrução, de todas as ameaças de que me acusa o MP, só me pronunciou por esta que eu, pelos vistos, guardo zelosamente para aplicar não sei quando, nem onde, nem como, porque ninguém tem a caridade de mo dizer!

Mas não é evidente essa ameaça? Evidente, salvo o devido respeito, é a ligeireza com que o MP me atribui «uma promessa de agressão físíca, idêntica (porém mais severa) a uma anterior (...)» (fls. 125 dos autos). Sempre com o mesmo respeito, igualmente evidente é a fragilidade do texto da pronúncia e a precipitação dos juízos ali contidos (fls. 262 dos autos), no que concerne ao mal físico alegadamente anunciado por mim.

O que eu escrevi e ficou esquecido, numa e noutra das passagens agora lembradas, foi o seguinte: «Não fora isso e o levíssimo cumprimento, que lhe fiz o ano passado, no jardim Sena Freitas, há muito teria sido antecipado e com outra intensidade.» (Fls. 4 dos autos).

Não fora isso, o quê? --- A oposição de meu Pai, bem patente quando, um pouco acima, eu deixei registado: «Valeu-lhe, fique aqui sabendo, ter-me meu Pai proibido de tirar desforço das vilezas de V. Ex.ª (...)» (ib.). E teria sido, isso o que é? É uma forma verbal do futuro do pretérito composto. Ora bem, na opinião de dois abalizados gramáticos da língua portuguesa, este tempo usa-se «para indicar que um facto teria acontecido no passado, mediante certa condição» ou «para exprimir a possibilidade de um facto passado». (Celso Cunha e Lindley Cintra --- Breve Gramática do Português Contemporâneo, Edições Sá da Costa, 1.ª ed., Lisboa, 1985, p. 333). (O sublinhado é meu).

Explicado fica o que me parecia de meridiana clareza. O castigo físico teria certamente acontecido no passado, se não fosse a resistência que encontrei na pessoa de meu Pai.

E que castigo é esse, ao qual me referi quando disse: «(...) o castigo, que não lhe dei porque meu Pai me impediu, vai recebê-lo agora (...)» (fls. 4 dos autos)? Será assim tão difícil aceitar que esse castigo são os custos que o assistente suporta quando eu não consinto nos seus manejos comerciais e o denuncio perante as autoridades? Ou só há castigo como resultado de golpes físicos que se desferem? Haja um pouco de equilíbrio, que tanto bastará para olhar com lucidez o caso que aqui se julga. Onde é que ameacei o assistente com a prática de qualquer dos males previstos no CP art. 153.º? E só esse comportamento, que eu não tive, é que prefigura uma ameaça criminosa.

Analisemos, agora, as alegadas ofensas à honra. São estas: afirmei que o assistente age por mesquinhez e baixeza de carácter; que está marcado pelas tristes condições do seu nascimento; que teve um casamento desgraçado; e que comete vilezas (fls. 109 dos autos).

Desta lista, que o assistente enunciou, transmito para final o que se prende com as condições do seu nascimento. Por ora, defendo-me apenas das outras acusações. Assim, direi:

Quando afirmo que o assistente age por «mesquinhez e baixeza de carácter», não vejo francamente onde esteja a ofensa. Mesquinhez, entre vários sinónimos, também significa desdita. Fosse esta palavra necessariamente ofensiva e o grande Camões ter-se-ia mostrado pouco galante ao referir-se à «linda Inês» (Lus. III, 120, v.1 ), como a «mísera e mesquinha/Que depois de ser morta foi Rainha.» (ib. 118, vv. 7-8). Por outro lado, se acusar outrem de baixeza de carácter não é elogio, nem por isso constitui ofensa. Baixeza, com efeito, tem vários sentidos, um dos quais é inferioridade, pelo que a expressão proferida envolve uma apreciação negativa, mas, insisto, não pode ser tomada como insulto.

A respeito do «casamento desgraçado», limito-me a perguntar que outro nome se pode dar a um casamento que acaba em divórcio (fls. 310 dos autos). Será que as pessoas se divorciam, quando vivem um casamento venturoso? É verdade que, nos dias que correm, a lei facilita enormemente a dissolução do vínculo conjugal. Se o motivo para divórcio, entre o assistente e a sua mulher canónica, foi mera diversão, então teríamos que a locução «casamento desgraçado» traduziria uma qualificação desajustada, uma tolice à dimensão da causa leviana do divórcio, mas injúria é que nunca.

Falta o ter eu escrito que o assistente comete vilezas. Esta imputação prende-se com as atitudes que o assistente tomava relativamente a meu Pai, numa altura em que este já contava mais de oitenta anos. Creio que ninguém sustentará que se enriquece eticamente quem doesta e atormenta uma pessoa com aquela idade, tanto mais tratando-se de um tio.

Passo, agora, à parte mais melindrosa da acção sub iudicio:

O assistente, procurando emoldurar o pedido cível para com ele se regalar um pouco mais, à minha custa, o assistente, repito, acusou-me de divulgar uma mentira (fls. 110) .

Que mentira? O assistente, muito dentro do estilo que o caracteriza, não diz onde foi que eu menti. Vou, com base num raciocínio especulativo, tentar pôr alguma ordem nisto:

Do libelo acusatário produzido pelo assistente contra mim, ressalta uma imputação de factos e o resto são juízos de valor. Com estes não vale a pena gastar tempo a avaliar se são verdadeiros ou falsos, porque se forem ofensivos não admitem prova da verdade. Logo, o assistente deve estar a reportar-se à questão de que agora vou tratar --- as tristes condições do seu nascimento. É de uma infelicidade pasmosa. Não o tivesse feito e eu não estaria aqui, como agora estou, a socorrer-me da exceptio ueritatis, defesa que, de outro modo, me seria vedada por «se tratar de um facto relativo à intimidade da vida privada e familiar.» (CP art. 180.º, n.º 3).

Ao mesmo tempo, e como já se referiu, o assistente junta a nota da publicidade à mentira que me atribui. Onde vê ele a divulgação? --- A minha carta foi-lhe directamente enviada. E dela dei conhecimento ao que era administrador-delegado da GALP ENERGIA junto da SAAGA, S. A. (fls. 110), o qual estava e está legalmente impedido de usar da mesma, em termos que contrariem a minha expectativa (CC art. 78.º). Não houve, pois, nenhuma divulgação, pelo menos da minha parte.

Esta circunstância agravante de crimes contra a honra não foi acolhida nem pelo MP nem pela M.ma Juíza de Instrução, dizendo mesmo esta Ex. ma Magistrada, no que concerne à publicidade da ofensa, que «(...) nada nos autos permite sustentar que o tenha sido, pelo que os indícios apontam para o tipo base.» (Fls. 263 dos autos).

Esclarecidos estes pontos, entro no núcleo da questão:

Ao escrever que o assistente estava «marcado pelas tristes condições do seu nascimento», apenas quis aludir ao facto de ele ter nascido fora do matrimónio, num meio social e cultural de moral extremamente rígida. Fi-lo sem o menor desejo de atingir o Pai do assistente e muito menos a Mãe, pessoa que nunca conheci porque morreu nem eu era nascido.

Hoje, interrogo-me seriamente se tornaria a escrevê-lo. Não pelo suposto agravo recebido pelo assistente, mas porque eu próprio experimentei um abalo profundo com o que apurei. O principal, aquilo que realmente interessava trazer aos autos, depois do dislate em que o assistente me acusa de mentir, isso ficou demonstrado por certidão que juntei, na contestação oferecida (fls. 307 a 310 dos autos). Quanto ao mais, a tarefa não é para mim. O choque sofrido, à vista dos indícios de não ter sido natural a morte da Mãe do assistente, foi violentíssimo e eu não quero prosseguir nas averiguações.

Porém, outras são as responsabilidades do assistente. E, se não é capaz de as assumir, isso só vem confirmar o facto por mim relatado: as marcas que lhe deixaram as condições do seu nascimento, em virtude de ser «(...) a Mãe solteira fonte de infortúnios inevitáveis e de tristezas sem conta (...)», segundo palavras do seu próprio mandatário (fls. 312 dos autos). Tudo isto rematado por outras circunstâncias que eu, antes deste processo, nem sequer imaginava. Fui-me inteirando delas, à medida que preparava a defesa contra esta delirante acusação.

Fosse qualquer mãe a maior megera do mundo que, mesmo assim, filho digno desse nome, não deveria dispensar os seus apelidos e, principalmente, deixar o episódio da sua morte nas fronteiras do desconhecido e na penumbra de um denso mistério. E era má mulher, a Mãe do assistente? Não o creio! Pois é, por ventura, mãe desnaturada a mulher que, na flor da idade, volta costas ao terrão natal e morre quando, na companhia dos filhos que concebeu, parte ao encontro de uma felicidade legítima, junto do homem de quem os teve?

Mais uma vez refiro que nada sei do seu passado, a não ser isto. Agora, acrescento apenas que ela se agigantou pelo muito amor, de que deu provas. Mas o apreço que tenho pela grandeza daquele coração de mulher, converte-se em repúdio para com o filho, que não usa o nome dela e, que se saiba, nunca ofereceu, a sua pobre Mãe, a esmola de um epitáfio.

Não há registo do óbito da Mãe do assistente nem na Povoação, concelho da sua naturalidade, nem em Ponta Delgada, lugar do seu último domicílio antes do embarque para a viagem fatal. Na Conservatória dos Registos Centrais também nada consta sobre a sua morte, assim como não se encontra notícia de qualquer inventário orfanológico. Pelo que, dentro de um estrito rigor jurídico, dela não se sabe se morreu ou se ainda vive. Infelizmente, desta vez, «quod fuit in mundo, non est in actis». Só persiste o enigma de como foi a sua morte.

Toda esta tragédia impunha ao assistente comportamento bem diferente, em vez de se sentir ofendido por uma injúria que não lhe fiz. Realmente, não sou capaz de compreender um filho que nega, à memória de sua Mãe, um direito que é correlativo ao direito de nascer --- o direito que tem qualquer pessoa, terminado o seu trânsito neste mundo, de estar morta à face da lei!

Na verdade, se a personalidade jurídica se adquire à nascença (CC art. 66.º, n.º 1), cessando com a morte (ib., art. 68.º, n.º 1), ficamos todos obrigados a observar os dois momentos enunciados. E esse respeito passa pela declaração formal de um e de outro, o que, quanto ao último deles, não aconteceu com a Mãe do assistente. Nesta omissão é que há agravo, e por esse agravo, intenso e contumaz, não sou eu o responsável. O culpado é o assistente, filho daquela desgraçada criatura. E culpa maior tem, ainda, por não investigar as circunstâncias da morte de sua Mãe.

A única atenuante, que lhe encontro, reside unicamente na falta de nervo para tão espinhosa missão. Porém, se assim é --- e como atrás já frisei --- tem de se concluir que é um homem muito amolgado pelo sucedido. Para o que, reconheço, lhe sobram razões. Mas isso só vem ratificar a minha análise sobre as condições do seu nascimento. É que essas condições traçaram o período que vai do berço até ao dia em que o assistente perdeu a Mãe, projectando-se muito para além disso. Ainda hoje, as marcas deixadas são perceptíveis e a prova está diante dos nossos olhos --- ela vê-se no comportamento actual do assistente!

Avivar uma recordação pungente é, por certo, violento. Seria desejável que não acontecesse, mas, quando ocorre, não constitui necessariamente crime. No caso dos autos, as palavras, em que aludo ao nascimento do assistente e que ele tem por insultuosas, não são ofensivas da sua honra porque lhes falta tipicidade jurídico-penal.

Nem tudo o que dói, transporta uma injúria. Assim estamos com a frase de que o assistente se queixou. O juízo, ali contido, independentemente do seu acerto ou desacerto, não é, de modo nenhum, o mesmo que insulto. E isto, ainda que houvesse o propósito de magoar. Seria, então, de uma imensa desumanidade, mas não é crime de ofensa à honra.

Chegou a altura de sublinhar que, à argumentação discursiva já desenvolvida apenas com base na dogmática do direito ordinário, acresce ainda uma razão de ordem superior. A questão sobe a um plano que é o da Constituição. Aí, dispondo a nossa Lei Fundamental que «os filhos nascidos fora do casamento não podem, por esse motivo, ser objecto de qualquer discriminação (...)» (ib., art. 36.º, n.º4), concluir que as minhas palavras, à volta das condições em que o assistente nasceu, preenchem o crime de injúria, julgar deste modo, insisto, envolve uma diminuição da dignidade dos filhos nascidos fora do casamento, em confronto com os que nascem dentro dele. O que, salvo melhor opinião, é manifestamente violador do espírito e da letra da Constituição (art. 13.º, n.º 1; art. 36.º, n.º 4)!

Se, apesar de quanto aqui expus, este Tribunal achar que há ofensa naquilo que escrevi, valha-me então a tese de que «esta ofensa não tem, pois, qualquer feição especial, sendo considerada idónea ou bastando para a justificar qualquer conduta censurável do ofendido, quer esta seja criminosa ou não, intencional ou culposa», conforme se expressam Leal-Henriques e Simas Santos (O Código Penal de 1982, vol. 2, Rei dos Livros, Lisboa, 1986, p. 226).

Recapitulando e concluindo:

Não ameacei o assistente de morte nem de qualquer outro mal. Com efeito, não há nos autos nem se logrou provar nesta audiência de julgamento a existência do elemento objectivo daquele tipo legal de crime. Mesmo que se persista em julgar o contrário, isso terá de considerar-se justificado à luz da lição de Taipa ele Carvalho.

Também não ofendi o assistente. A carta alegadamente injuriosa --- e à qual não dei qualquer publicidade --- pode ser olhada como um documento severo e duro, mas severidade e dureza não são, automaticamente, elementos constitutivos dos crimes contra a honra. Contudo, porque pode este Tribunal assim não o entender, invoco de novo, em meu auxílio, a opinião acima transcrita da autoria de Leal- Henriques e de Simas Santos.

Por fim, penso que a indemnização pedida não deve proceder, pela razão comezinha de não ter havido crime nem prática de qualquer outro ilícito que me possa fazer incorrer em responsabilidade.


JUSTIÇA!

Joaquim Maria Cymbron
 
NOTA FINAL:
Conforme eu anunciara, em seguida ao texto publicado a 02DEC07 (data originária), aqui se inserem as minhas alegações de defesa num processo para o qual fui atirado por alguém de temperamento psicótico, índole retrincada e uma profunda cegueira, que o impede de ver que não passa de um joguete nas mãos de um advogado medíocre e sem carácter.
O julgamento realizou-se na minha ausência, graças à decisão arbitrária de uma Juíza, que me denegou a possibilidade de estar presente, impedindo-me assim de exercer, em toda a plenitude, os meus direitos de defesa.
Certamente, não ficaremos por aqui. A sentença está marcada para 06FEV08. Aí se saberá como proceder!
28JAN08 (data originária)
JMC

terça-feira, 3 de junho de 2008

UMA QUEIXA INFAME


P. 565/03.5 TAPDL
3.º Juízo
 

ALEGAÇÕES DE DEFESA


Compareço, neste Tribunal, acusado de ter chamado louco e homossexual ao assistente. Parece fábula, mas não é. Razão pela qual tenho de me defender daquelas acusações --- tanto a que provém do assistente como a formulada pelo MP --- por mais que elas me deixem estupefacto.
 
E como se isto não bastasse, fui também acusado pelo assistente de dar publicidade às injúrias. Porquê? --- Porque o escritório, para onde dirigi as alegadas ofensas, tem inicialmente dezenas de trabalhadores com acesso ao fax (fls. 1), os quais subitamente baixam para «mais de 12 empregados que trabalham com o receptor» (fls. 43), e cuja curiosidade foi por mim espicaçada, quando classifiquei de confidencial o documento, que serviu de veículo aos pretensos insultos (ib.). E é deste número de mais de doze empregados que o assistente tira uma testemunha, revelando essa testemunha que nada viu, nada leu, uma vez que respeitou a nota de confidencialidade junta ao documento (fls. 48).

Felizmente, este Tribunal entendeu que não houve publicidade e, neste segmento, rejeitou a acusação particular (fls. 109). Também neste ponto, já o MP se afastara do assistente (fls. 49). Portanto, poderia concluir-se pela inutilidade da referência a este pormenor, uma vez que o mesmo foi considerado improcedente. Todavia, achei melhor lembrar tal episódio, para começar a desenhar o perfil do assistente, destacando já um traço muito significativo da sua personalidade --- malícia na confusão ou confusão na malícia, conforme se prefira!

Não obstante a inexistência da agravante da publicidade, mesmo assim cumpre deslindar se são procedentes as acusações de base, isto é, se eu chamei louco e homossexual ao assistente.

A primeira das acusações procura encontrar fundamento nestas linhas, que eu escrevi ao assistente: «( ... ) vou propor ao meu advogado ( ... ) que contra-alegue requerendo exame pericial às suas faculdades mentais ( ... )» (fls. 3). Foi isto mesmo que levou o assistente a queixar-se, alegando que eu, com essas palavras, quis chamar-lhe louco.

Se, ali, se encontrar animus iniuriandi --- o que eu não concedo --- é forçoso achar o mesmo na prova que o assistente tentou fazer e que deu origem à minha réplica.

Com duas notas que marcam a diferença:
 
A minha frase insere-se numa carta em que é visivel como estou dorido pelas reais injúrias do assistente, exasperado por um inquérito muito suspeito, moído por tanto atropelo à lei e à lógica, acabando por soltar um desabafo, que é reputado injurioso; na ponta de lá, aparece-nos o assistente, inconformado com o indeferimento da sua pretensão em demonstrar a loucura, que ele ex cathedra me atribuiu e que, à viva força, queria ver consagrada.

Surge agora o traço que, mais fortemente, distingue os dois comportamentos: o assistente, primeiro, decretou a minha loucura e, depois, correu atrás de uma confirmação judicial da sua sentença médica. Quer dizer: o assistente chamou-me louco, sublinhando, num alarde de fanfarronice, que não tinha medo de dizê-lo na presença do meu advogado (P. 7505/00 da 3.ª S. da 3.ª Vara Cível, na comarca de Lisboa). É notório que o assistente insultou pelo gosto do enxovalho e, mais tarde, quando viu o que isso lhe estava a custar, em desepero de causa, tentou a via da exceptio ueritatis, que não era transitável. Autêntico beócio no direito, mal assistido neste campo e de raciocinio enviesado, o assistente sucumbiu no recurso que interpôs. Em contrapartida, eu apontei noutro sentido: comece-se pelo exame e logo se irá ao diagnóstico.

Portanto, é manifestamente insubsistente a razão pela qual o assistente se sente ofendido. Quando o assistente diz que eu lhe chamei «louco (...) pois é óbvio que não se pede exame às faculdades mentais duma pessoa normal», isto equivale a associar exame psiquiátrico a loucura, o que é um erro grosseiríssimo. Só a pura arbitrariedade pode assimilar uma coisa à outra!

Em suma: o recado, que enviei ao assistente de que iria requerer exame às suas faculdades mentais, não tem, por certo, maior grau ofensivo do que a pretensão, que ele encarniçadamente perseguiu. Isto, na sua génese. Porque, no desenvolvimento, foi claramente muito mais inocente: o meu aviso ficou-se pelas palavras, ao passo que o assistente só não consumou o seu propósito porque uma decisão judicial lhe cortou esse caminho.

Entra-se, agora, no que esta acusação tem de mais sórdido: o assistente queixa-se de que eu lhe chamei homossexual. E, também aqui, é acompanhado pelo MP.

Reagindo a isto, começo por registar, com agrado, o facto de tanto a acusação particular como a do Ex. mo Magistrado do MP coincidirem neste ponto: a imputação de homossexualidade constitui um insulto. Nestes tempos de tamanha imprecisão nos conceitos e de tanto relativismo moral, é reconfortante ver que ainda há referências a um padrão de valores. Só nesta base, que se me afigura correcta, a imputação de homossexualidade caberá na categoria das ofensas, sem embargo de poder considerar-se que esta conclusão viola o princípio constitucional da igualdade (CRP art. 13.º, n.º 2). Pois se a Constituição liberta a homossexualidade de toda a carga estigmatizante, que tradicionalmente lhe anda associada; quando a nossa Lei Fundamental proíbe a segregação decorrente da orientação sexual de cada um (ib.), não resultará daqui que sai descriminalizado o acto de chamar homossexual a quem quer que seja? É que só há insulto onde um juízo de valor desprimoroso vai envolto com a palavra proferida. Ora a lógica constitucional fez desaparecer a nota distintiva entre homossexual e heterosssexual. Pelo que dizer de um determinado homem que ele é pederasta, não tem maior carga negativa do que afirmar que ele é um garanhão!

Concluindo: à face do texto constitucional, o epíteto de homossexual só preencherá uma afronta, quando atirado sobre quem o é, com a finalidade de o achincalhar. Significa isto que, nos presentes autos, para haver crime, era preciso: primeiro, que se provasse a homossexualidade do major Bastos; depois, que eu a conhecesse; por último, que o assistente alguma vez tivesse assumido essa orientação e fosse meu propósito rebaixá-lo por isso!

Mas, porque há quem julgue o contrário daquilo que será, porventura, a doutrina da Constituição e aqui, segundo já foi dito, parece que todos --- assistente; MP; e eu --- todos os três, sem excepção, nos incluimos nesse grupo, é da mais elementar sensatez olhar o facto denunciado como se estivéssemos perante um crime.

Assim, no pressuposto válido de ser a imputação de homossexualidade, in abstracto, uma ofensa, resta apurar se, no caso sub iudicio, tal imputação se verificou, sem o que não terá havido ofensa.

Pergunto, pois:

Terei mesmo prevaricado quando, dirigindo-me ao assistente, escrevi «(...) eu não me confundo consigo, nem sou o major Bastos!»? Ou foi o assistente quem tresvariou, ao revelar que o major Bastos era homossexual, apoiando-se nos rumores que existiam, na «fama», como ele diz? É que, francamente, a fama não autoriza que se afirme nada, muito menos facto de tanta gravidade. O assistente melindra-se com aquilo que se reduz a uma suposta injúria, mas não hesita em atribuir a outra pessoa, o que, para ele, é ofensivo. E fá-lo, repita-se, agarrado ao débil argumento da fama.

Se houvesse alguém, bem identificado, que viesse aos autos garantir que as alegadas tendências do major Bastos eram uma realidade, confessando que tomara parte nesses desvios, esse depoimento já seria de valorizar porque teria rosto. Mas não há! Portanto, para corroborar a fama dessa perversão, não aparece o testemunho de ninguém com uma razão de ciência mais sólida do que o frágil 'diz-se que era'. Temos de convir que este argumento é sempre pouco. E, em matéria tão delicada como esta, de nada deve valer.

Aquilo que o assistente pretende, para me incriminar, é que se tenha por líquido o que a ser voz pública, será uma voz remota, difusa, talvez já esquecida de alguns e nunca ouvida por muitos que, do major Bastos, nem sequer formarão a mais pequena ideia. O assistente, dentro de um estilo que é muito dele quando está animado por um capricho, não pára, não recua, nem se importa que o seu comportamento vá manchar a imagem de terceiros. No caso em apreço, calcou aos pés pudor e decência, e veio salpicar de lama a reputação de uma pessoa falecida, só para obter a satisfação de me arrastar a Tribunal e, nele, empenhar-se na minha condenação.

Se aqui existe agravo, não fui eu o seu autor; se há uma vítima, certamente que essa vítima não será o assistente. O assistente é o culpado do insulto que recai sobre a memória de um morto.

Se esta atitude merece reparo moral, juridicamente ela não é apenas censurável: é também inaceitável. Com efeito, não se conseguirá a minha condenação, sem provar antes --- entre outras coisas --- a homossexualidade do major Bastos. Mas esta prova, que a acusação deseja ver triunfar, seria um aborto.

Concretizando melhor:

Como responderia a acusação, se eu dissesse, frontalmente, sem ambiguidades, que corria fama de que o assistente ou o seu patrono, um deles fora protagonista nas orgias do major Bastos? É razoável prever que o visado já chamaria mentirosa à fama e seria inclemente comigo: havia de me espostejar no potro da execução, não consentindo que eu buscasse salvação na fama.

E andaria bem. De facto, não pode a defesa valer-se de nenhum meio de prova quando essa prova incida sobre factos da vida privada (CP art. 180.º, n.º 3), como é exemplo o caso dos presentes autos no que se reporta à falada homossexualidade do major Bastos. Seria um absurdo lógico e um perfeito atentado à harmonia do direito, permitir que a acusação passasse por uma porta que a defesa está impedida de transpor.

A acusação, ignorando tudo isto, se é que não quer calar estas coisas, avança em direcção proibida e pensa trilhar essa vereda arrimada ao bordão quebradiço da fama.

Fama é, na definição de Moraes e Silva ou de Cândido de Figueiredo, sinónimo de voz pública, voz geral. O mesmo sentido lhe dá o moderno Dicionário da Academia. Mas a lei processual penal não reconhece valor a esse depoimento (CPP art. 130.º, n.º 1). É que vozes públicas não são sindicáveis e, por isso, gozam de total impunidade. Se este depoimento fosse lícito, voz pública rapidamente se tornaria no paládio de qualquer sujeito processsual, segundo o fim que a este conviesse. Teríamos a prova esvaziada de conteúdo, porque a uma sombra se contraporia outra sombra, dentro da mais completa irresponsabilidade.

Nestes termos, não é tolerável carregar-me com a culpa de algo que não se provou nem pode provar-se. Não estando provada e sendo legalmente improvável a invocada homossexualidade do major Bastos, repugna ao entendimento que se me atribua a intenção velada de imputar, ao assistente, uma nota execrável que afinal ficamos sem saber se existiu na pessoa daquele oficial.

Mesmo que a alegada homossexualidade do major Bastos fosse uma certeza, eu não quis identificar o assistente com ele, muito menos no sentido visto pela acusação, sentido a que não fiz a mais leve alusão, não aderi, nem adiro. De resto, para que se pudesse conscientemente afirmar que tive a intenção da qual o assistente se queixa, tinha a acusação de provar ainda que eu conhecia o que a fama contava do major Bastos e, depois, que fora meu propósito estender esses rumores ao assistente. Ora eu nego que soubesse de tal fama. E, se não faz falta buscar o elemento volitivo do dolo onde não chega a haver representação do crime, sempre acrescentarei que, mesmo a par de tais rumores, nutrindo como nutro a mais profunda desconfiança e até o mais soberano desdém por essa pretensa fonte de notícias, nem explicita nem implicitamente, me serviria dessa propalada fama, por uma razão de prudência.

Sem prescindir do que até aqui expus, direi, por outro lado, que nem sequer o elemento literal daquilo que escrevi autoriza a interpretação que a acusação insiste em dar-lhe. Com efeito, quando comuniquei que não me confundia com o assistente nem era o major Bastos, não quis estabelecer qualquer relação entre eles, mas sim que eu era distinto de ambos. Isto é ofensivo?

A frase textual é esta: «Sr. Dr. Augusto! Eu nao me confundo consigo, nem sou o major Bastos!»

Vejamos o primeiro contraste:

«Eu não me confundo consigo (...)». Mas não é o próprio assistente quem já me chamou louco, enquanto ele se apresenta como uma pessoa equilibrada? O assistente não me denuncia como um cábula relapso, incapaz de acabar um curso de Direito, iniciado em vetustas eras, tendo ele, assistente, o singular privilégio de ser formado em História? Não fui eu relegado pelo assistente para o lote dos chantagistas e dos maus pagadores, quando ele se diz um modelo de probidade? Não tive atritos com camaradas de armas, no teatro operacional da Guiné, ao passo que o assistente cumpria placidamente o serviço militar no BII 18, aquartelado nesta ilha? A seguir ao 28 de Setembro de 1974, em Luanda, não fui preso por ordem do almirante Rosa Coutinho, ao mesmo tempo que o assistente participava ordeiramente na jigajoga da politica democrática? Não sou eu um díscolo --- e perigoso porque ando armado --- quando dele, assistente, não se tem notícia de uma única briga desde a infância até hoje?

De maneira que, por aqui, o assistente só tem de se felicitar pela diferença que eu estabeleci entre os dois. Diferença, foi quanto pretendi marcar. Eu não disse que era pior, nem que era melhor do que o assistente --- limitei-me a assinalar que éramos diferentes, com o que proclamei a minha própria identidade. O que, por ora, ainda é um direito de cidadania.

Sobre a referência ao major Bastos, ainda é mais simples:

O que eu conheço daquele oficial, de ciência certa, é que ele abandonou voluntariamente o Exército. Calculando --- pelos vistos mal --- que o assistente também soubesse deste facto e se recordasse dele, eu quis dar-lhe a entender que não me demitiria nem desistiria de lutar contra os constantes atropelos à minha honra e ataques à minha fazenda, dos quais, entre outros, é autor o assistente. A tanto se resumiu pouco mais de uma linha, que a acusação, dolosamente ou transtornada no curso do seu raciocínio, distorceu por completo.

Aliás, a acusação mostra bem a vacuidade do pedido que, a este respeito, formulou. Se por lei, como já vimos, lhe é vedado demonstrar o conteúdo da alegada fama do major Bastos, ao menos que provasse a existência dessa fama. Para isso, que testemunhas arrolou? Nem uma! A acusação lançou para a mesa do pretório que era fama, e por aí se quedou. Talvez à espera de que o fundamento invocado --- essa triste fama --- recebesse o tratamento reservado aos factos notórios.

Estaremos, por casualidade, na presença de um facto notório? Na opinião de Alberto dos Reis «factos notórios equivale a factos do conhecimento geral. (...). Visto que a generalidade do conhecimento há-de ultrapassar os limites territoriais da comarca, temos de a referir a todo o território do Estado em que o pleito se debate.» (Código de Processo Civil Anotado, III, 4.ª ed., Coimbra Editora, L.da, Coimbra, 1985, p. 261).

Aqui, de notório, só temos que a questão, em análise, não se encaixa na previsão do grande Mestre! Porque teima, pois, o assistente em atribuir-me a intenção de um insulto, ligado a um facto que não logrou provar? --- A acusação age, pelo menos, com temeridade. O seu discurso enferma de um vício dialéctico: avança para o consequente sem estabelecer o antecedente de forma clara e inequívoca.

A fama, a fama que não é boa, a fama que foi chamada para aqui, parece-se com a mulher pública, tentadora para muitos que a abraçam na semiclandestinidade dos amores duvidosos, mas que ninguém quer desposar, à luz do dia. Assim foi na presente causa: não houve quem se unisse à cortesã que é a fama, nestas circunstâncias!

Pela minha parte, o capítulo do major Bastos toca o seu termo. Foi com desgosto que tive de lhe mexer (1).

Ao comportamento, que a acusação atribui àquele oficial, os antigos canonistas chamavam-lhe pecado nefando. Como é sabido, em latim, nefandum significa aquilo de que não se deve falar. Julgo eu que lhes assistia inteira razão. É pena que alguns esqueçam a lição e não se abstenham de entrar nesta matéria, só porque a sua exagerada sensibilidade se achou atingida. E é tanto mais de lamentar, quando deste procedimento sai ferida a memória de terceiros.

Eu --- já o confessei antes --- olho as inclinações homossexuais de modo muito negativo. Mas, como sucede com qualquer outra desordem, a minha censura dirige-se mais ao facto, em si, subordinando a juízos casuísticos os comportamentos concretos dos seus agentes. E, aplicando os ensinamentos dos velhos doutores em cânones, não resisto a lembrar: coisas há que, mesmo verdadeiras, é melhor deixar que o manto da vergonha as cubra recatadamente.
 
Chegámos ao fim:

Esta defesa não é uma explicação --- eu não tenho de a dar perante quem me acusa de ofensas não proferidas. Nem é uma justificação --- as justificações valem para afastar a ilicitude de factos abstractamente puníveis. Esta defesa visa pôr a nu que a acusação não provou a existência de qualquer crime. É quanto basta.

 
JUSTIÇA!


Joaquim Maria Cymbron

________________________________________
  1. Na peça apresentada em juízo, por manifesto lapso, em lugar de 'mexer' seguiu 'tocar'.
NOTA COMPLEMENTAR:
Fui absolvido na primeira instância. Inconformado, o assistente recorreu. Perdeu, também aí.
Este processo só se compreende pela personalidade doentia do assistente e, muito, devido à perfídia, ao impudor e à falta de honra do seu patrono.
Desta vez, saiu conspurcada a imagem de uma pessoa morta. Para 08JAN08 --- se entretanto não ocorrer algum adiamento --- serei julgado num processo que vai levantar a questão de um provável crime de morte, perpetrado há sessenta e cinco anos! Desse caso, oportunamente darei notícia neste blogue.
E isto, porquê? --- Porque se observa um denominador comum: o mesmo advogado amoral. É que a suspeita de crime, a que acima me referi, não é nova. Ela, em tempos, invadiu toda a alta sociedade micaelense, e continua latente. Os que se me opõem, não notam que aquele advogado procura enlamear um nome grande daquelas terras. Não reparam, ou não se ralam com isso.
De uma coisa, podem estar certos: eu, para me proteger dos ataques que sofro, não vou atender a considerações familiares. Eles que tivessem pensado nisso. Há duas coisas que detesto: primeira, provocar escândalo; segunda, fugir por medo ao escândalo que outros desencadeiam. Acho isso um reflexo muito burguês. E eu de bastantes defeitos posso ser acusado, menos de ter um temperamento burguês.
Entendi dar hoje, a público, este texto, porque vem ao encontro do que, neste mesmo blogue, escrevi a 05NOV07, quando, em O DRAMA JUDICIÁRIO, aludi aos culpados pelo mau funcionamento dos tribunais. É mais um caso entre vários que aqui irei trazendo e que, infelizmente, não esgotam a podridão que vai no mundo forense! 
 
NOTA DE FECHO:
Não forneço a identidade completa do assistente nestes autos, porque o simples facto de enunciar os seus apelidos me enche de vergonha. De resto, conforme é hábito, o processo está bem referenciado. Quem tiver interesse nisso, pode facilmente colher os dados que lhe importam.
 
02DEC07 (data originária)
 
JMC

domingo, 1 de junho de 2008

UM PROCURADOR COMPLEXO OU COMPLEXOS DE UM PROCURADOR


Coimbra, 23.01.06

Ex.mo Sr.:

Eu esperava ardentemente a hora em que, livre de entraves, pudesse dizer o que lhe faz falta ouvir.

Agora, o assunto é entre nós os dois: de um lado, eu; e, do outro, alguém que não aparece na veste de magistrado e a quem me dirijo fora dessas funções e sem ser por causa delas.

A queixa desastrada que apresentou contra mim --- «queixo-me de ti, porque te queixaste de mim» ---, queixa à qual, se fossem iguais os nossos conceitos, eu podia opor outra --- «queixo-me de ti, porque te queixaste de mim, porque me queixei de ti» --- num processo indefinido, absurdo completo, aberração jurídica, essa queixa teve o mérito, único mérito, de revelar a sua inclinação para a psicanálise. Inclinação marcadamente infeliz, porque quem resolve trilhar essas veredas, sujeita-se a acabar como paciente, onde se julgava médico.

Dir-lhe-ei, pois:

Pratica o mergulho desportivo, não é assim? Sabe o que isso significa, no mundo freudiano? Para o caso de não ter estudado a matéria e de ninguém o ter informado, não me custa nada comunicar-lhe que tal escolha é sintoma de nostalgia da paz uterina.

Ora, ainda dentro da mesma escola, parece que essa nostalgia é vivida por todos nós, em maior ou menor grau e sem que disso tenhamos uma clara consciência. Simplesmente, há situações onde já se descobre uma manifestação doentia.

O desejo frequente de imersão num líquido, é um dos sinais mais eloquentes da existência de problemas clínicos. E se a água escolhida for a do mar, então, isso é ainda mais concludente, porque este elemento se aproxima bastante do líquido amniótico, lembrando a vida intrauterina, a quem nele mergulha.

Várias causas se perfilam como resposta. Mas há uma, que costuma ser apontada como a mais comum --- a fixação obsessiva à mãe. O filho teve uma infância que foge aos padrões correntes e, em virtude desse acontecimento menos normal, refugia-se na memória inconsciente do tempo em que se sentia bem, aconchegado num lugar macio e de agradável temperatura.

Uma mãe demasiado possessiva, ríspida, desleixada ou de maus costumes, tudo isto pode dar origem a essa fixação mórbida. O filho quer, então, recordar o que de bom a mãe lhe deu, enquanto ele, simples feto, não se inteirava da real dimensão daquela que o trouxe no ventre.

Outro quadro, de iguais consequências, é o da mãe solteira. Se isto se verifica num meio humano de forte religiosidade e de raiz sociológica bastante conservadora, a nostalgia da paz uterina torna-se ainda mais aguda. E quando o filho, assim concebido, é rejeitado pelo pai, aí os contornos ganham um intenso dramatismo. Desenvolve-se, então, um processo mental em que a imagem da mãe passa por uma transformação ideal, saindo quase depurada de todos os vícios. É a via encontrada para compensá-la do abandono que atingiu ambos, e que o filho sente como um gesto cobarde que o penaliza e que gera nele uma enorme revolta.

Resta-me ainda acrescentar que as hipóteses avançadas não têm de existir separadamente. Às vezes, assiste-se ao concurso de umas e outras.

Deixo-lhe, aqui, um trabalho de introspecção, o qual, a avaliar pelos precedentes, tenho sérias dúvidas se será capaz de levar a cabo. Mas far-lhe-ia um certo bem, creia, olhar-se ao espelho e ver dentro de si. Menos presunção e um discurso mais verdadeiro, é da mais elementar higiene!

Sem outro assunto,

(A carta levava a minha assinatura)

Obs.: O magistrado aqui visado dirigiu um inquérito aberto por queixa que eu apresentei e que veio a constituir o P. 443/02.5 PBPDL. Nestes autos, houve uma sucessão de eventos criminosos que levaram a que eu participasse dele. A reacção, que teve aquele magistrado, foi ripostar com uma queixa contra mim, por considerar que houve calúnia da minha parte, quando o denunciei. No entanto, o MP mandou que essa queixa fosse arquivada por estar desprovida de qualquer fundamento: às vezes, o bom senso triunfa!
Tudo junto, determinou a carta aqui publicada.

18NOV07 (data originária)

Joaquim Maria Cymbron

sábado, 31 de maio de 2008

UM SONHO DE JUÍZA


Outras eram as circunstâncias, quando este texto foi publicado pela primeira vez. Já gravíssimas, e presságio claro de males muito maiores que vieram a ter uma triste confirmação. O seu conteúdo não foi tocado.
Eis a peça:


P. 363/05.1 TAPDL
4.º Juízo

M.ma Juíza de Direito

JOAQUIM MARIA BOTELHO DE SOUSA CYMBRON, arguido nos autos à margem referidos, ao abrigo do preceituado no CPP art. 98.º, n.º 1,


VEM EXPOR:

O arguido alegou insuficiência de meios económicos para se deslocar a S. Miguel, requerendo, ao abrigo da lei, que lhe fossem custeadas as despesas de viagem e de hotel enquanto durasse o julgamento marcado para 15 de Fevereiro último. Mostrou-se disposto a apresentar prova documental, se a isso fosse intimado. Entretanto, arrolou testemunhas. Ora este é um meio de prova legítimo e que ao arguido, por razões que então explicou, lhe pareceu mais válido do que juntar papéis. V. Ex.ª indeferiu o requerimento, sem audição das testemunhas indicadas!

Mais tarde, o arguido requereu o adiamento da já referida audiência com base no impedimento de uma testemunha. Também esta pretensão foi indeferida.

Na manhã do dia em que que devia proceder-se ao julgamento, após a chamada da praxe, o mandatário do arguido ouve, directamente da boca de V. Ex.ª, que a audiência era adiada porque o seu constituinte estava ausente!

Como remate desta abóbada, muito longe do primor revelado por aquela que Mestre Afonso Domingues ergueu na Batalha, surge a condenação do arguido em custas por ter faltado!

Quando V. Ex.ª protrai uma audiência de julgamento pelas causas, modo e momento em que o faz, toma uma decisão cujo grau de exigência, para com o arguido e até hoje, só foi igualado pelo despacho que lhe ordenou a presença física na Ribeira Grande, a fim de ser notificado de uma sentença já conhecida nos termos legais.

O arguido faltou, pois, no dia 15 do mês de Fevereiro e, provavelmente, continuará distante do Tribunal Judicial de Ponta Delgada até que muita coisa mude.

Não fosse a tendência de fixar no foro dessa comarca a competência territorial para o julgamento de processos instaurados ao arguido, orientação essa que, em certos casos, deixa muitas dúvidas sobre a sua justeza; se não negassem ao arguido o direito a defender-se por si próprio, direito este consagrado em convenções internacionais recebidas na ordem jurídica interna; se ambas as coisas, pelo menos estas duas, não se tivessem verificado, a situação financeira do arguido seria outra e é muito provável que lhe sobrasse o bastante para viajar até S. Miguel sempre que fosse convocado em juízo.

Mas não se lhe peça que vá, não tendo dinheiro. Foi por esta penúria económica que o arguido deixou de mandar rezar missa pelas almas de seus Pais, como costumava fazer todos os meses; também por ela, desistiu de consultas médicas e interrompeu outras; ainda pelo mesmo motivo, adiou sine die a operação cirúrgica à acromioclavicular direita (sequela do atropelamento que sofreu há pouco mais de um ano), uma vez que não tem com que pagar as despesas do período de convalescença. Estas são apenas as mais salientes das privações que atingem o arguido, e de que V. Ex.ª não se inteirou porque se absteve de ouvir as testemunhas por ele arroladas.

Portanto, não é justo nem digno que se pretenda obrigar o arguido a ir a S. Miguel para ser julgado. E, além de não ser justo nem digno, também não é razoável, porque – a menos que haja uma brusca e sensível mudança de fortuna – a ordem não é exequível. Que conste claramente: se o arguido continuar ausente, não será com o propósito de desacatar o comando desse tribunal. Por sua livre vontade, o arguido nunca perderia oportunidade de voar até S. Miguel.

O mais natural, porém, é não poder fazê-lo. Sendo-lhe materialmente impossível obedecer – e enquanto o for – o arguido agirá sem culpa quando não comparecer nos actos judiciais, para os quais o convoquem. É que ad impossibilia nemo tenetur! Por isso, carregar o arguido com custas porque faltou nas condições expostas, e esperar a chegada do seu mandatário, ao Tribunal Judicial de Ponta Delgada, quando é certo que o referido advogado tem escritório em Coimbra, mais não é do que lançar água sobre quem se está afogando.

De resto, para quê tanto empenho na presença do arguido, quando este se pode remeter ao silêncio (CPP art. 343.º, n.º 1; ib. art. 345.º, n.º 1)? O arguido não é peça artística nem artigo de montra. As primeiras encontram-se nos museus e os últimos nas lojas de casas viradas para o comércio. Muito diferente, portanto, das funções que a lei confiou aos tribunais, onde os elementos decorativos já abundam.

Não é culpa do arguido que o campo de previsão do CPP art. 318.º, n.º 1 não se estenda a quem tem o seu estatuto. Se os arguidos podem «requerer ou consentir que a audiência tenha lugar na sua ausência» (CPP art. 334.º, n.º 2), com maioria de razão lhes devia ser permitido depor por teleconferência. E embora esse tribunal reconheça que o apoio judiciário não solucionaria o problema da deslocação, nem por isso desiste de recomendá-lo ao arguido. Será que não se entende que desse apoio só podem valer-se os párias da rua, enquanto não se descobrir que comem do contentor do lixo e têm uns cobertores onde se enrolar?

Por outro lado, o património de que o arguido é titular, e ao qual V. Ex.ª alude, invocando conhecimento oficioso, também não deve aceitar-se como argumento para fundamentar a denegação daquilo que o arguido pediu.

Essa improcedência resulta, desde logo, de uma razão de ordem formal:

Com efeito, à luz da subida autoridade de Alberto dos Reis, «o juiz pode servir-se de factos que tenham chegado ao seu conhecimento no exercício da sua função jurisdicional, o que significa que não pode servir-se de factos de que tenha obtido conhecimento fora do exercício da sua função.» (Código de Processo Civil Anotado, III, 4.ª ed., Coimbra Editora, 1985, p. 264). E, logo a seguir, o inolvidável Mestre acrescenta que «o facto há-de constar de qualquer processo, acta ou peça avulsa em que o juiz tenha intervindo como tal.» (ib.). Por fim, a lei é inequívoca ao distinguir os factos que não carecem de alegação e de prova daqueles que apenas dispensam a alegação, estabelecendo, quanto aos últimos, que «quando o tribunal se socorra destes factos, deve fazer juntar ao processo documento que os comprove.» (CPC art. 514.º, n.º 2, in fine).

Ora nada disto se verifica no despacho de indeferimento que esse tribunal proferiu. Remeter para o processo de inventário, em que o arguido foi interessado, não chega. O conhecimento que se tenha do conteúdo daqueles autos, expresso do modo que foi, não se estrema da razão de ciência que um magistrado adquire, quando o porteiro do tribunal o informa sobre o estado do tempo.

Ainda que ficasse provadamente definido o património do arguido, uma coisa é o seu valor real e outra, bem diferente, a cotação venal. Neste momento, dos bens de que o arguido é titular, só um pode ser vendido livremente. No que concerne aos outros, a sujeição é quase absoluta, porque o regime da amortização coloca o arguido à mercê do valor contabilistíco, o qual converte a transmissão de participações sociais num contrato que não se afasta muito do pacto leonino na assimetria espelhada pela sua linha mais pura.

Mas, por instantes, suponhamos que o arguido conseguia uma contrapartida justa. Isto apenas como hipótese, porque os sócios onzeneiros, que rodeiam o arguido, nunca permitirão ir mais além de um belo sonho. E, aqui, pergunta-se: Será muito difícil adivinhar que, mesmo efectuando-se uma venda equitativa, o problema não sofreria a mais pequena alteração? Custa assim tanto reconhecer que o arguido vive dos frutos civis produzidos pelos bens que constituem o seu actual património? E que, alienado este, teria de procurar, nos rendimentos dos bens sub-rogados no lugar dos primeiros, a fonte da sua subsistência? Ou a finalidade é precisamente atirar com o arguido para a indigência mais completa?

O arguido não tem dúvidas de que o seu património é um naco no qual muitos gostariam de ferrar o dente. Reduzir a parte contrária à impotência económica é estratégia processual que nada tem de nobilitante, mas que, por vezes, se usa com maldade refinada. É, porém, impensável que os tribunais – templos de justiça como todos desejaríamos – adoptem o mesmo padrão destruidor. Assentar no contrário, significaria imputar-lhes um comportamento que anda próximo da cumplicidade em lide instrumentalmente dolosa.

O arguido está consciente de que a hostilidade, que enfrenta, cobra vigor na impunidade que respiram aqueles que a exibem. A culpa disto cabe aos responsáveis das decisões que vão gerar aquele sentimento. Sossegados pelos novos estilos da corte, os favorecidos com esta sorte vão multiplicando processos contra o arguido. Aquele que, até agora, é o mais intangível de todos eles, deu-se ao desaforo – em julgamento – de confessar que move acções contra o arguido para que este, ocupado a defender-se, fique impedido de o chamar a tribunal.

O autor desta façanha justifica-se com o exemplo dos mais assinalados guerreiros – atacar antes de ser atacado! É pena que tal génio militar ande perdido nessas ilhas, e não ponha o seu talento ao serviço de causas superiores. Este Aníbal ignorado encarna também um modelo de honradez, como só as idades antigas conheceram.

Depois de – em juízo – apontar o remédio para os males financeiros do arguido (em grande parte derivados da sua fecunda administração), sai-se com mais uma das suas inocentes proezas: não paga ao arguido a soma da indemnização civil, na qual foi condenado por sentença com trânsito em julgado. Tudo isto se passa na comarca de Ponta Delgada, mas, como se calculará, nenhuma destas coisas é do conhecimento oficioso desse tribunal. Não convém. Quidam nasus, enim, displicuit!

O arguido, quando requereu o apoio previsto na lei (CPP art. 332.º, n.º 3), anunciou implicitamente que iria faltar, se a sua pretensão não fosse atendida, conforme sucedeu. Ao arrolar testemunhas, cumpriu simultaneamente o disposto no CPP art. 117.º, n.º 3 e, com isso, ofereceu ao tribunal – se as tivesse ouvido, como era sua obrigação – os meios adequados para apreciar uma falta que o arguido insiste em considerar cabalmente justificada. Por último, mandando o seu advogado a S. Miguel, indicava tacitamente ao tribunal que se achava representado para todos os efeitos processuais.

Tanto devia bastar para que se considerassem sanadas quaisquer dúvidas sobre a licitude do julgamento sem o arguido presente. No entanto, aquilo a que se assistiu foi ao adiamento da audiência. Esta decisão, no contexto vivido, sabe a castigo. Porquê? – Será porque o arguido está condenado a colher tempestades, uma vez que semeia ventos?

Esta pergunta não é produto de imaginação febril que, porventura, tenha atacado o arguido. Aquelas palavras foram articuladas, afirmativamente, por uma magistrada judicial dessa comarca, a qual, não obstante ter formulado tal opinião sobre o arguido, nem por isso deixou de julgar numa causa em que ele era parte. E, note-se bem, até à data ainda não teve coragem de assumir a autoria dessa frase, apesar da reputação de frontalidade de que goza. O arguido intui que isto será do conhecimento oficioso desse tribunal. E aqui não será preciso juntar documentos de prova, porque uma simples declaração satisfaz plenamente!


11NOV07 (data originária)


Joaquim Maria Cymbron