Outras eram as
circunstâncias, quando este texto foi publicado pela primeira vez. Já gravíssimas,
e presságio claro de males muito maiores que vieram a ter uma triste
confirmação. O seu conteúdo não foi tocado.
Eis a peça:
P. 363/05.1 TAPDL
4.º Juízo
M.ma Juíza de Direito
JOAQUIM MARIA BOTELHO DE SOUSA CYMBRON,
arguido nos autos à margem referidos, ao abrigo do preceituado no CPP
art. 98.º, n.º 1,
VEM EXPOR:
O arguido alegou insuficiência de meios
económicos para se deslocar a S. Miguel, requerendo, ao abrigo da lei, que lhe
fossem custeadas as despesas de viagem e de hotel enquanto durasse o julgamento
marcado para 15 de Fevereiro último. Mostrou-se disposto a apresentar prova
documental, se a isso fosse intimado. Entretanto, arrolou testemunhas. Ora este
é um meio de prova legítimo e que ao arguido, por razões que então explicou,
lhe pareceu mais válido do que juntar papéis. V. Ex.ª indeferiu o requerimento,
sem audição das testemunhas indicadas!
Mais tarde, o arguido requereu o adiamento da
já referida audiência com base no impedimento de uma testemunha. Também esta
pretensão foi indeferida.
Na manhã do dia em que que devia proceder-se
ao julgamento, após a chamada da praxe, o mandatário do arguido ouve,
directamente da boca de V. Ex.ª, que a audiência era adiada porque o seu
constituinte estava ausente!
Como remate desta abóbada, muito longe do
primor revelado por aquela que Mestre Afonso Domingues ergueu na Batalha, surge
a condenação do arguido em custas por ter faltado!
Quando V. Ex.ª protrai uma audiência de
julgamento pelas causas, modo e momento em que o faz, toma uma decisão cujo
grau de exigência, para com o arguido e até hoje, só foi igualado pelo despacho
que lhe ordenou a presença física na Ribeira Grande, a fim de ser notificado de
uma sentença já conhecida nos termos legais.
O arguido faltou, pois, no dia 15 do mês de
Fevereiro e, provavelmente, continuará distante do Tribunal Judicial de Ponta
Delgada até que muita coisa mude.
Não fosse a tendência de fixar no foro dessa
comarca a competência territorial para o julgamento de processos instaurados ao
arguido, orientação essa que, em certos casos, deixa muitas dúvidas sobre a sua
justeza; se não negassem ao arguido o direito a defender-se por si próprio,
direito este consagrado em convenções internacionais recebidas na ordem
jurídica interna; se ambas as coisas, pelo menos estas duas, não se tivessem
verificado, a situação financeira do arguido seria outra e é muito provável que
lhe sobrasse o bastante para viajar até S. Miguel sempre que fosse convocado em
juízo.
Mas não se lhe peça que vá, não tendo
dinheiro. Foi por esta penúria económica que o arguido deixou de mandar rezar
missa pelas almas de seus Pais, como costumava fazer todos os meses; também por
ela, desistiu de consultas médicas e interrompeu outras; ainda pelo mesmo
motivo, adiou sine die a operação cirúrgica à acromioclavicular
direita (sequela do atropelamento que sofreu há pouco mais de um ano), uma vez
que não tem com que pagar as despesas do período de convalescença. Estas são
apenas as mais salientes das privações que atingem o arguido, e de que V. Ex.ª
não se inteirou porque se absteve de ouvir as testemunhas por ele arroladas.
Portanto, não é justo nem digno que se
pretenda obrigar o arguido a ir a S. Miguel para ser julgado. E, além de não
ser justo nem digno, também não é razoável, porque – a menos que haja uma
brusca e sensível mudança de fortuna – a ordem não é exequível. Que conste
claramente: se o arguido continuar ausente, não será com o propósito de
desacatar o comando desse tribunal. Por sua livre vontade, o arguido nunca
perderia oportunidade de voar até S. Miguel.
O mais natural, porém, é não poder fazê-lo.
Sendo-lhe materialmente impossível obedecer – e enquanto o for – o arguido
agirá sem culpa quando não comparecer nos actos judiciais, para os quais o
convoquem. É que ad impossibilia nemo tenetur! Por
isso, carregar o arguido com custas porque faltou nas condições expostas, e
esperar a chegada do seu mandatário, ao Tribunal Judicial de Ponta Delgada,
quando é certo que o referido advogado tem escritório em Coimbra, mais não é do
que lançar água sobre quem se está afogando.
De resto, para quê tanto empenho na presença
do arguido, quando este se pode remeter ao silêncio (CPP art. 343.º, n.º
1; ib. art. 345.º, n.º 1)? O arguido não é peça artística nem artigo de
montra. As primeiras encontram-se nos museus e os últimos nas lojas de casas
viradas para o comércio. Muito diferente, portanto, das funções que a lei
confiou aos tribunais, onde os elementos decorativos já abundam.
Não é culpa do arguido que o campo de previsão
do CPP art. 318.º, n.º 1 não se estenda a quem tem o seu estatuto. Se os
arguidos podem «requerer ou consentir que a audiência tenha lugar na sua
ausência» (CPP art. 334.º, n.º 2), com maioria de razão lhes devia ser
permitido depor por teleconferência. E embora esse tribunal reconheça que o
apoio judiciário não solucionaria o problema da deslocação, nem por isso
desiste de recomendá-lo ao arguido. Será que não se entende que desse apoio só
podem valer-se os párias da rua, enquanto não se descobrir que comem do contentor
do lixo e têm uns cobertores onde se enrolar?
Por outro lado, o património de que o arguido
é titular, e ao qual V. Ex.ª alude, invocando conhecimento oficioso, também não
deve aceitar-se como argumento para fundamentar a denegação daquilo que o arguido
pediu.
Essa improcedência resulta, desde logo, de uma
razão de ordem formal:
Com efeito, à luz da subida autoridade de
Alberto dos Reis, «o juiz pode servir-se de factos que tenham chegado ao seu
conhecimento no exercício da sua função jurisdicional, o que significa que não
pode servir-se de factos de que tenha obtido conhecimento fora do exercício da
sua função.» (Código de Processo Civil Anotado,
III, 4.ª ed., Coimbra Editora, 1985, p. 264). E, logo a seguir, o inolvidável
Mestre acrescenta que «o facto há-de constar de qualquer processo, acta ou peça
avulsa em que o juiz tenha intervindo como tal.» (ib.). Por fim, a lei é
inequívoca ao distinguir os factos que não carecem de alegação e de prova
daqueles que apenas dispensam a alegação, estabelecendo, quanto aos últimos,
que «quando o tribunal se socorra destes factos, deve fazer juntar ao processo
documento que os comprove.» (CPC art. 514.º, n.º 2, in fine).
Ora nada disto se verifica no despacho de
indeferimento que esse tribunal proferiu. Remeter para o processo de
inventário, em que o arguido foi interessado, não chega. O conhecimento que se
tenha do conteúdo daqueles autos, expresso do modo que foi, não se estrema da
razão de ciência que um magistrado adquire, quando o porteiro do tribunal o
informa sobre o estado do tempo.
Ainda que ficasse provadamente definido o
património do arguido, uma coisa é o seu valor real e outra, bem diferente, a
cotação venal. Neste momento, dos bens de que o arguido é titular, só um pode
ser vendido livremente. No que concerne aos outros, a sujeição é quase
absoluta, porque o regime da amortização coloca o arguido à mercê do valor
contabilistíco, o qual converte a transmissão de participações sociais num
contrato que não se afasta muito do pacto leonino na assimetria espelhada pela
sua linha mais pura.
Mas, por instantes, suponhamos que o arguido
conseguia uma contrapartida justa. Isto apenas como hipótese, porque os sócios
onzeneiros, que rodeiam o arguido, nunca permitirão ir mais além de um belo
sonho. E, aqui, pergunta-se: Será muito difícil adivinhar que, mesmo
efectuando-se uma venda equitativa, o problema não sofreria a mais pequena
alteração? Custa assim tanto reconhecer que o arguido vive dos frutos civis
produzidos pelos bens que constituem o seu actual património? E que, alienado
este, teria de procurar, nos rendimentos dos bens sub-rogados no lugar dos primeiros,
a fonte da sua subsistência? Ou a finalidade é precisamente atirar com o
arguido para a indigência mais completa?
O arguido não tem dúvidas de que o seu
património é um naco no qual muitos gostariam de ferrar o dente. Reduzir a
parte contrária à impotência económica é estratégia processual que nada tem de
nobilitante, mas que, por vezes, se usa com maldade refinada. É, porém,
impensável que os tribunais – templos de justiça como todos desejaríamos – adoptem
o mesmo padrão destruidor. Assentar no contrário, significaria imputar-lhes um
comportamento que anda próximo da cumplicidade em lide instrumentalmente
dolosa.
O arguido está consciente de que a
hostilidade, que enfrenta, cobra vigor na impunidade que respiram aqueles que a
exibem. A culpa disto cabe aos responsáveis das decisões que vão gerar aquele
sentimento. Sossegados pelos novos estilos da corte, os favorecidos com esta
sorte vão multiplicando processos contra o arguido. Aquele que, até agora, é o
mais intangível de todos eles, deu-se ao desaforo – em julgamento – de
confessar que move acções contra o arguido para que este, ocupado a
defender-se, fique impedido de o chamar a tribunal.
O autor desta façanha justifica-se com o
exemplo dos mais assinalados guerreiros – atacar antes de ser atacado! É pena
que tal génio militar ande perdido nessas ilhas, e não ponha o seu talento ao
serviço de causas superiores. Este Aníbal ignorado encarna também um modelo de
honradez, como só as idades antigas conheceram.
Depois de – em juízo – apontar o remédio para
os males financeiros do arguido (em grande parte derivados da sua fecunda administração),
sai-se com mais uma das suas inocentes proezas: não paga ao arguido a soma da
indemnização civil, na qual foi condenado por sentença com trânsito em julgado.
Tudo isto se passa na comarca de Ponta Delgada, mas, como se calculará, nenhuma
destas coisas é do conhecimento oficioso desse tribunal. Não convém. Quidam
nasus, enim, displicuit!
O arguido, quando requereu o apoio previsto na
lei (CPP art. 332.º, n.º 3), anunciou implicitamente que iria faltar, se
a sua pretensão não fosse atendida, conforme sucedeu. Ao arrolar testemunhas,
cumpriu simultaneamente o disposto no CPP art. 117.º, n.º 3 e, com isso,
ofereceu ao tribunal – se as tivesse ouvido, como era sua obrigação – os meios
adequados para apreciar uma falta que o arguido insiste em considerar cabalmente
justificada. Por último, mandando o seu advogado a S. Miguel, indicava
tacitamente ao tribunal que se achava representado para todos os efeitos
processuais.
Tanto devia bastar para que se considerassem
sanadas quaisquer dúvidas sobre a licitude do julgamento sem o arguido
presente. No entanto, aquilo a que se assistiu foi ao adiamento da audiência.
Esta decisão, no contexto vivido, sabe a castigo. Porquê? – Será porque o
arguido está condenado a colher tempestades, uma vez que semeia ventos?
Esta pergunta não é produto de imaginação
febril que, porventura, tenha atacado o arguido. Aquelas palavras foram
articuladas, afirmativamente, por uma magistrada judicial dessa comarca, a
qual, não obstante ter formulado tal opinião sobre o arguido, nem por isso
deixou de julgar numa causa em que ele era parte. E, note-se bem, até à data
ainda não teve coragem de assumir a autoria dessa frase, apesar da reputação de
frontalidade de que goza. O arguido intui que isto será do conhecimento
oficioso desse tribunal. E aqui não será preciso juntar documentos de prova,
porque uma simples declaração satisfaz plenamente!
11NOV07 (data originária)
Joaquim Maria Cymbron