As duas fotocópias, que abaixo acompanham este texto, apresentam conteúdo de invulgar crueza: são verdadeiros documentos pornográficos!
Apesar
de tudo, achei que devia difundi-los tal como saíram a público e escrever
as linhas, que seguem, para que se pondere sobre a abominável decadência
da nossa Magistratura.
O Correio da Manhã, no passado dia 20 do corrente mês, trouxe uma
notícia ribombante ao conhecimento do público. Poucas, mesmo raríssimas são as ocasiões
em que vejo um órgão da comunicação social prestar tão relevante serviço à
comunidade.
A chamada de atenção surge, de
imediato, na primeira página; o desenvolvimento vem no interior. Qual a
matéria? --- Uma ninharia! Foi só isto: a história do clássico triângulo. Desta
vez, um juiz e uma juíza pousam descaradamente em dois dos três vértices que concorrem
a desenhar a figura; o vértice, que falta, é o lugar do queixoso.
E onde girava a roda desses inocentes
prazeres? No mais recôndito do lupanar escolhido pelos que, no doce torpor dos
sentidos, esqueciam estado e posição, na sofreguidão de saciar impulsos
lascivos. Coitaditos: não faziam por mal, era uma loucura romântica aquela que
os cegava!
Mas não se cai em injúria por
relegar um Tribunal para a categoria de lupanar? Concedo que é realmente
injurioso, mas não tem o Tribunal de se dar por atingido, porque quem se pode
doer é o lupanar. E, a haver ofensa para o Tribunal, em caso algum seria eu o
autor do agravo, porque quem profanou o recinto foram duas pessoas que ali
trabalham. A distância, que puseram entre o local dos seus desmandos e um bordel,
cifra-se em dinheiro. E o sistema de cobrar não rebaixa o bordel, porque lhe
deixa o mérito de aparecer com a cara daquilo que é.
Porém, tudo o que foi expendido
até aqui é reflexo de uma filosofia de vida onde reinam conceitos retrógrados e
que cheiram a bafio. Abramos os olhos e arejemos as mentes:
O Conselho Superior da Magistratura decidiu-se pela não-existência de
qualquer ilícito. É desta forma sumaríssima, que o jornal refere o fundamento
encontrado por aquele órgão para ordenar o arquivamento do processo
disciplinar, instaurado na sequência da queixa recebida. Não adianta mais. E,
assim, permite que se murmure e rebente a indignação.
Temos de convir que, no presente
caso, um juízo de reprovação é um exagero. Só numa reacção manifestamente
excessiva se poderá concluir pela prática de uma infracção disciplinar.
Infelizmente, não é qualquer sensibilidade que se mostra provida de finura
suficiente para julgar este episódio com aquele equilíbrio que é curial exigir.
Summum ius, maxima iniuria. Afinal que fizeram as pobres criaturas? Prevaricaram? --- É bem
sabido que não há ilicitude onde não se verifique, primeiro, a tipicidade e, em
seguida, a culpa. Podemos ainda admitir a tipicidade, mas resta a culpa.
Será então de acusar aqueles
mesquinhos por agirem com culpa? É que a culpa reúne dois momentos: consciência
do desvalor do comportamento por acção ou por omissão; e vontade de assumir
esse comportamento. A verdade é que estes elementos faltam aqui.
Com efeito, não há notícia de um
magistrado ter prevaricado, consciente de que ia contralegem. Desde há muitos anos que isto é uma constante.
Compulsem-se os anais judiciários e procure-se encontrar lá um caso em que
tivesse sido decretada uma condenação. Nada, nem uma para amostra! O estilo
usado é sempre o de que o magistrado, que responde, se comportou sem consciência
de que violava a lei. Disto, que devia ser motivo de tristeza, de tristeza e de
vergonha porque é autêntica apoteose da impunidade, desta desolação,
insista-se, se ufanam os senhores magistrados porque, entendem eles, resulta
provado que são limpos e puros como uma criança saída das águas do baptismo. Entretanto,
o leigo obrigado a recorrer aos Tribunais passa a saber que nunca correrá o
risco de ser julgado por magistrados deliberadamente inclinados a um mundo de
qualquer tipo de marginalidade, porque os piores, pelo menos transitoriamente,
são apenas ignorantes. A confiança, que isto transmite, como se torna fácil de
calcular, é imensa! Mas esta censura é, sublinho, produto de feitios rancorosos.
Prosseguindo, logo se notará que,
neste delicado caso, a ausência de culpa por defeito de vontade também não é
custosa de demonstrar. Os contornos sucintamente descritos pelo jornal, e os
mais que se adivinham, fazem supor que, num comportamento objectivamente
escabroso, até houve muita renúncia e um alto espírito de missão. A intenção de
perpetrar o que está proibido era-lhes completamente alheia. De resto, já se
registou antes que nenhum deles tomara consciência da ilicitude dos factos pelo
que, por mais que se quisesse, nunca seria possível imputar-lhes o propósito de
derrocar os padrões legalmente instituídos.
Os processos litigiosos, que
arrancam de situações idênticas às que viveram estes magistrados ou que irrompem
como incidentes de outras causas, enfim, as questões conflituosas submetidas à
apreciação dos mesmos ou de outros magistrados, independentemente da origem que
têm, todas essas pendências requerem apurado estudo. Para levar a cabo essa
análise, nada melhor do que proceder à reconstituição dos factos. Nunca sendo possível atingir uma perfeita comunhão entre as sensações que cada um vive e as do nosso próximo, o mais que se conseguirá, como aproximação, é que as experimentemos nós próprios. É difícil,
para não dizer irrealizável determinar o grau de ilicitude da perversidade alcançada
e fixar a intensidade do dolo sem sentir palpitações da carne tão acesas.
Não se pode recusar, aos magistrados em causa, um enorme afecto à profissão que
abraçaram, afecto bem revelado na frequência e no ardor das cenas que resolveram
representar em conjunto. Mais concretamente: todos aceitamos, por notório que
é, não ter sido o apetite insofrido da libertinagem que os arrastou para aqueles
fogosos transportes. A atmosfera daquele recanto era, tendencialmente, de uma
sensualidade idílica: a mesma que se respira num serralho do Oriente! Nem
devemos lamentar não avistar ali o histórico eunuco, pois a sua presença foi
perfeitamente dispensável: num ambiente impregnado de uma ponta à outra da mais
refinada candura e do mais estreme idealismo, esse guardião da honra dos haréns
estaria a mais. E a persistência, que nessa tarefa observaram estes mártires da moral pública, essa então é
exemplar e até comove. Mesmo à custa da sua reputação e vencendo um natural
pudor, que ninguém ousa negar-lhes, sacrificaram-se pelo zelo em que ardiam de
dignificar as suas funções. Tamanha abnegação, força é confessá-lo, não é para
todos!
Nestes termos, parece inilidível que
não houve da parte dos denunciados o mais pequeno desejo de infringir a lei. E
uma vez que nulla poena, sine culpa,
a decisão foi a que já conhecemos. Em jeito de remate, pode ainda repetir-se a
ideia, já expressa, de que este conúbio não foi fruto da luxúria, porque foi
animado por um elevadíssimo sentido do dever!
Joaquim Maria Cymbron