P.188/13.0 TARGR
1.º Juízo
TJPDL
As
alegações, que abaixo se perfilam, foram preparadas para defesa em audiência de
julgamento. Ainda consegui lê-las até pouco mais de um terço. Dali para diante
fui impedido de prosseguir.
Pior
sucedeu quando me foi vedado interferir na inquirição das testemunhas,
diligência na qual depositara a esperança de produzir prova da verdade contida
nas alegações que aqui apresento.
Em
caso algum, ninguém melhor que o arguido conhecerá a causa que se debate em
juízo, a sentirá e aspirará a ganhá-la. Quando esse arguido não é propriamente
hóspede em Direito, negar-lhe a possibilidade de exercer a sua defesa nos
termos da lei processual penal, poder que está consagrado em tratados
internacionais livremente celebrados pelo Estado Português e que regularmente
ratificados e aprovados passaram a fazer parte da ordem jurídica interna,
recusar-lhe isto, insisto, tem sabor a crime.
Se já sobrava quanto nesta peça
descrevo, o que se passou após a minha retirada compulsiva da sala de audiência
foi um número de circo, triste e apagado!
Venho acusado de crime de injúria agravada na pessoa de uma Magistrada Judicial. Francamente, não percebo como.
Injúria verbal não a fiz: vivo em Coimbra e a queixosa está em S. Miguel, onde eu não venho há mais de quatro anos. De resto, nunca me cruzei com a Senhora Magistrada, aqui ou noutro sítio. Uma vez, só uma, tive ocasião de a ver por teleconferência, mas não interferi na inquirição e também não se procedeu a qualquer acareação. Repito, pois, que contacto pessoal e directo nunca houve.
Terei cometido o crime por escrito? –
Não me parece. As linhas, dirigidas à queixosa, limitaram-se a sumariar os
incidentes de um processo. É isto crime contra a honra? – Não o creio: de uma
ponta à outra do texto enviado, nem uma palavra se pode considerar injuriosa,
trate-se de quem se tratar.
Onde está, pois, a ofensa? Será nas
meias? Vejamos:
As meias foram oferecidas à queixosa,
nestes autos, e também à Juíza que se sentiu ofendida no processo em que foi
julgadora a queixosa. Dispondo a lei que «à difamação e à injúria verbais são
equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de
expressão.» (CP art. 182.º), cabe perguntar:
As meias são uma peça escrita? Traduzem
gestos? Constituem imagens? – A todas estas interrogações, é líquido que a
resposta há-de ser um rotundo não. Caem, porventura, na previsão do
estabelecido pela norma acima citada, quando esta, na sua parte final, fala em
«qualquer outro meio de expressão»? – Tenho o hábito de fugir a toda a casta de
trocadilhos: acho de péssimo gosto esse recurso. Mas desta vez não resisto a
dizer que este Tribunal só tem de apreciar o envio de uma meia (da outra, não
era destinatária a queixosa) e que sendo meia, não é meio, muito menos um meio
de expressão. Promiscuidade com a identidade de género, já levamos mais do que
a conta!
Daqui para a frente, não se exaspere o
Tribunal se eu der a impressão que discorro afastando-me do objecto do
processo. A verdade, porém, é que o feito sub iudicio não é um caso
isolado. Como as telhas de cobertura de uma casa estão imbricadas umas nas
outras, assim estão os presentes autos ligados a muitos mais, numa extensa e
fastidiosa cadeia de processos, onde todos ou quase todos estão, uns para os
outros, numa relação de causa e efeito. Ouvindo-me, logo o Tribunal se dará
conta do estreitíssimo laço que une este processo a litígios que o precederam
ou o rodeiam, e só pesando esse conjunto é que, salvo melhor juízo, estará em
condições de se pronunciar sobre aquilo de que sou acusado. Estou firmemente
convicto que é inegável a causalidade adequada entre tudo quanto aqui trarei à
colação, o que se me afigura bastante para, pelo menos, atenuar a minha culpa,
na eventualidade de vir este Tribunal a considerar crime o facto por mim
praticado.
Sem prescindir do que já disse, a saber,
que esse facto não preenche o crime que me é imputado (e entendo mesmo que
nenhum outro), por mera cautela e tanto quanto isso me for possível, não
deixarei de desenhar os traços da minha personalidade perante este Tribunal, e
de lhe transmitir todo o contexto em que se integra o que aqui se vai
julgar.
Nesta conformidade e antes de
prosseguir, convém que nos detenhamos a reflectir neste ponto: Quando o agente
da autoridade comete abuso de poder, lá está o Juiz para repor as coisas no seu
devido lugar. Se é o Advogado quem conduz mal a causa, sempre o Juiz pode
chamá-lo à ordem e sanar os erros cometidos. Por fim, da prudência do Juiz
esperamos que modere os destemperos dos que legislam. Mas se é o Juiz que
falha, quem temos atrás dele para nos valer? E é aqui precisamente que assenta
o drama – a crescente angústia com que se repete esta interrogação: Qui
custodiat custodia? Não há resposta para esta pergunta. Ora o que não tem
remédio, remediado está. Por isto mesmo, sobre os ombros da Magistratura
Judicial, cai uma responsabilidade que eu não hesito em qualificar como a mais
ingente entre a dos restantes detentores do poder soberano.
Há casos definidos por lei nos quais, em
processo-crime, os Tribunais podem funcionar com intervenção de júri. Que eu saiba,
raramente é requerida a sua constituição. Será a intuição de que, no meio do
lodaçal em que vamos patinhando, será bom que se erga um corpo que escapa ao
sufrágio das maiorias? É provável. Haja, pelo menos, um grémio que nada deva à
escolha de uns quantos, parcelas de uma soberania imaginária que, na feira dos
mitos que a democracia é, dizem à classe política que há-de governar conforme
prometeu, o que quase nunca acontece. É sempre saudável que não se deixe o
interesse colectivo ao sabor de um método selectivo, que pretende encontrar a
expressão dos mais altos expoentes do todo nacional, quando, além do que
geralmente apresenta de insubsistente, volúvel e caprichoso, a maior parte das
vezes só lhe é dado escolher entre os mais ambiciosos e exibicionistas. Se,
como agora, o eixo de valores morais se apresenta tão torcido, a necessidade de
alguém que se imponha por ter real qualidade, torna-se ainda maior, e aparece
como última esperança de salus populi, antes do recurso à suprema razão
da força armada, medida gravosíssima, mas incontornável, quando há o risco de
se desfazer por completo o tecido social.
Pelo que agora expus, não me vejo a
pedir jurados. Palpita-me que prova mais eloquente de consideração pelas
Magistraturas de carreira não será fácil oferecer, não obstante as críticas que
desenvolvo, sempre que, no meu entender, não são respeitados os padrões do
Direito. Os Tribunais existem, pois, como derradeiro refúgio da paz vivida
dentro de uma ordem que se deseja justa. No seu exercício, têm de pairar acima
das partes porque discutir não é função que lhes caiba: os Tribunais têm como
missão o suum cuique tribuere e, no seu exercício, deve imperar o
esforço permanente de que o Direito por eles definido seja concretização
perfeita da ars boni et aequi, conforme enunciava o CIC.1
É uma indignidade a dos Magistrados que
bebem o cálice amargo da humilhação até às fezes, porque neles o desejo de
retaliar afoga o sentimento do amor-próprio. E, no entanto, vemos alguns
tragarem as afrontas recebidas, engolirem tudo conforme podem, para terem o
mesquinho prazer da vingança. Depois, quando se torna sumamente aviltante
aguentar mais, lá reagem. O pior vem se se lembram de desistir da acção
intentada, sujeitando-se à oposição de quem chamaram a juízo. O pior? – Não,
porque um caso conheço eu, pelo menos um, no qual depois da instauração do
procedimento criminal e da tentativa de lhe pôr fim com desistência da queixa,
o que não se alcançou por oposição do arguido, descobriram que o crime afinal
não fora crime. Quem apareceu como protagonista deste triste acontecimento?
Sabe-o bem esta comarca de Ponta Delgada: o arguido fui eu e a queixosa é a
ofendida nestes autos.
Diz-se que a Maçonaria, entre os seus
estribilhos favoritos, prezava especialmente aquele em que proclamava levar as
instituições ou às violências que comprometem, ou às transigências que
envergonham. Parece ter esquecido que esse caminho tem dois sentidos: o caso
do processo, a
que acabo de aludir, é um bom exemplo de como se pode virar o feitiço
contra o feiticeiro!
No crime, que aqui se aprecia, afinal de
que sou acusado? Basicamente, como ficou dito logo no início, acusam-me da
autoria de agravos na pessoa da queixosa e nas circunstâncias já referidas.
Para além do que ali disse impugnando a natureza ofensiva de quanto me é
imputado, e sem prescindir dessa defesa, contesto que agravos são os agravantes
que os fazem, quando são agravados: se agravei, foi porque antes fui agravado;
se feri, terá sido porque primeiro me feriram. A ter efectivamente agravado
alguém, estou firmemente convicto de que exerci um direito de retorsão (CP
art. 186.º, n.º 2). E fi-lo de forma tão suave que não é sensibilidade o
queixume despedido: quem o solta, dá prova de uma susceptibilidade doentia. Se
ponderarmos bem todo o dano que a queixosa me vem fazendo desde o processo que
foi ocasião dos presentes autos, é força confessar que o meu comportamento não
passa os limites de um moderado ripostar, de uma réplica quase ou mesmo
inocente. Como é exemplo revelador o feito ora trazido a julgamento, o qual,
torno a lembrar, nem crime constitui, pelo que já referi logo ao abrir estas
alegações.
Julgue-se como se julgar, não se pense
em negar aos particulares o recurso ao aludido direito de retorsão. Trata-se de
um direito natural, que a lei humana não cria, mas apenas reconhece e consagra.
Se qualquer legislador combater esta reacção, e ainda que pesadas sanções
acompanhem essa proibição, ela não deixará de continuar a ser usada por quem
for perturbado em circunstâncias que não permitam outra resposta. Ainda poderá
alcançar-se passividade por parte daqueles que a tudo se sujeitam; já não se
conseguirá o mesmo de uma comunidade inteira. Seria equivalente à interdição
geral de respirar, o que é manifestamente inexequível.
Os Tribunais têm o poder de ditar a
sorte das partes envolvidas em conflito. Mas nem sempre o fazem com Justiça.
Nalguns dos casos que me dizem respeito, andaram muito longe dela, procedendo
de forma gravemente culposa. E quando se afastaram do que prescreve o direito,
prevaricando claramente, que aconteceu aos Magistrados que o fizeram? –
Rigorosamente nada! Os julgadores consideraram os denunciados por aquele crime
como quem age sem consciência de violar o direito. Inteirei-me assim de que há
Magistrados que, pelo menos algumas vezes, se perderam no caminho da lei. Como
esses Magistrados dispõem da minha honra, da minha fazenda e, indirectamente,
até da minha vida, é óbvio que não posso ficar sossegado.
Estou persuadido que esta insegurança se
estende hoje a sectores muito vastos da população portuguesa. Direi mesmo: ela
começa a ser geral. E nem o facto de a maior parte das pessoas ser incapaz de
avaliar com precisão a profundidade do mal, reduz a intranquilidade que se
respira. Pode mesmo aumentá-la, já que a ignorância nunca foi boa conselheira
contra o medo. De resto, se a opinião pública não é intelectualmente perspicaz
no grau detido pelos conhecedores das leis, nem por isso deixa de pressentir o
perigo tão agudamente como os mais sábios o vêem.
Ao longo deste conflito, várias foram as
vezes em que assisti à aplicação da lei para lá de tudo o que a doutrina nos
ensina, e a jurisprudência – a jurisprudência sã e recta – observa. Se esta
fosse uma jurisprudência uniforme, nunca mais eu pediria justiça diante de um
tribunal português. De qualquer maneira, cheira-me que se aproxima a passos
largos a fase de erros de ofício e de malícia, sucedendo-se uns aos outros sem
parar. Aquilo a que então se assistirá, será a contumácia no abuso da lei. E a
conversão está vedada a quem é relapso.
Lamento que não estejam presentes os
Magistrados que eu critico. Não me refiro exclusivamente à queixosa nestes
autos, porque recordo aqui todos quantos venho criticando desde há muito tempo
e que foram, uns causa directa, e outros mera ocasião do que está sub
iudicio. Quase todos foram alvo de queixas por mim apresentadas: e o número
destas é bem elevado! Nenhuma foi julgada procedente pelo que os Magistrados,
nelas denunciados, passaram incólumes esse escolho. Agiram sem saber o que
faziam. Já se falou disso atrás e, agora, não é tempo de voltar ao assunto.
Serve esta memória para mostrar que se é certo que nenhum denunciado foi punido,
só numa queixa se deixou de considerar preenchido o elemento objectivo do tipo
legal de crime. Em todos as outras, lembro de novo, foi a ausência de dolo,
incompreensivelmente alegada, que valeu aos denunciados. Tendo sido estes
factos que, a par de outras causas, me moveram a assumir o comportamento pelo
qual respondo, é força concluir que não são elementos despiciendos.
Aos agentes do que acabo de recordar,
gostava de os estar vendo agora, olhá-los de frente e, em voz de todos audível,
torná-los cientes da revolta que me enche o peito. Alguns passaram por aqui,
mas já se foram; outros não foram citados, que o rol ia já comprido. Não me
resta mais remédio que notificá-los do banco em que me encontro:
Criminoso, eu? Não! Criminosos sois
todos os que, de processo em processo, me vindes empurrando para este e outros
julgamentos!
É bem possível que saia deste Tribunal
vergado ao peso de uma condenação. Cairia de todos os modos sob suspeição que
eu dissesse agora o que faria, se fosse o julgador. Mas isto garanto: se a vara
do mando alguma vez tivesse estado nas minhas mãos, eu nunca levaria ninguém a
um grau de desespero tão forte que não lhe deixasse via diferente daquela que
tenho sido obrigado a percorrer; e, na posição de simples cidadão, despido de
qualquer veste de soberania, ficaria mais atento aos sinais de aviso lançados
por quem se me queixasse de que eu punha em risco a sua sobrevivência.
Esses sinais foram em número
impressionante. Como nunca haverá correspondência exacta e precisa entre
disposições de ânimo e grandezas quantificáveis, da resignação que mostrei
apenas direi que ela correu na razão inversa do caso que de tudo isto fizeram:
à medida que o meu drama era ignorado, crescia a minha paciência; e,
simultaneamente, à minha passividade respondiam os órgãos judiciais com uma
prepotência recrudescida. Todos? – Não! Mas aqueles que o fizeram, usaram de
uma dureza em grau mais que suficiente para me esbulharem por completo.
O meu colapso financeiro consumou-se há
muito, e rapidamente caí na ruína. Sobrevivo graças a ajudas que recebo de
amigos e à mensalidade que me é paga por uma das maiores culpadas do estado a
que me reduziram. Já lhe fiz saber que aceito essas prestações a título de
indemnização antecipada. E também garanti que, no dia em que cesse o envio
desse dinheiro, ninguém me verá a tirar comida do contentor do lixo, nem
estendido a dormir em bancos de jardins ou debaixo das pontes. Na prisão,
qualquer recluso tem um tecto para abrigá-lo e mesa que o farte. Maior
eloquência, não a creio possível.
As instâncias, com uma ligeireza que
choca qualquer pessoa de são equilíbrio, durante bastante tempo mais do que o
admissível, vêm-se mostrando insensíveis a esta situação. A minha penúria não
as impressionava, nem impressiona. Como resposta aos meus argumentos, têm
deixado escapar insinuações de uma riqueza oculta de que eu seria titular, mas
cuja existência até hoje nunca provaram, não podendo fazê-lo porque essa
riqueza só vive na mente dos que a ela aludem. Aguardavam de mim a confissão de
que era dono de um património apreciável. Ora se eu tenho o dever de provar os
direitos que alego, já não sou capaz de declarar bens fabulosos, que ninguém
arrola nem é capaz de dizer onde se encontram. Façam-no, e eu lhes prometo que
não tardarei em ir buscar essa fortuna escondida.
Há, em S. Miguel, quem suponha que o
motor desta imensa e complexa pugna se reconduz a rixas geradas em inventário
para partilha judicial de uma herança. É a imagem fiel dos erros que podem
viciar a análise que fazemos sobre o agir dos outros, sempre que nos domina a
maldita cupidez do oiro, esse metal luzente que deslumbra a vista, ofusca a
mente e envenena o coração. Esta impressão singular passou de fora para dentro
dos Tribunais, levada por misterioso e enganador correio, mais enganador que
misterioso. Quem tiver um mínimo de agudeza, depressa verá que eu pleiteei,
antes como agora, não para enriquecer, mas à procura de dinheiro, que era meu,
o suficiente que pagasse os custos do combate por uma causa que me transcende.
As censuras, que tantas vezes levanto
contra os excessos que me atingem, mais que um direito, constituem um dever. Se
nenhum projecto eu tivesse, admito que poderia ser bastante meritório sofrer
calado e quieto o tratamento brutal de que sou vítima. Porém, o sonho que
alimento há mais de catorze anos, dirige-se à instituição de uma Fundação. Essa
Fundação destina-se a levar socorro aos doentes em fase terminal; ser apoio
para mulheres em risco de abortar, e mães que queiram cuidar de seus filhos, a
tempo inteiro, sem poder fazê-lo porque um só salário não chega para sustento
do agregado familiar; por último, soar em tribunal como voz dos que a não têm
por carência de meios económicos. Levará o nome de meu Pai: será o tributo da
lealdade que, como filho, lhe devo. Dentro do possível, procurará ser ainda o
abraço que lhe faltou à hora da morte, e que fui impedido de lhe dar pela acção
criminosa de uns quantos que por aí se passeiam e se chamam seus filhos.
Mantenho a convicção de que me venho
defendendo, por um modo que, conforme já sustentei, é relativamente brando. E
de que me defendo eu? – Acabei de aflorar esta matéria: defendo-me de uma
agressão actual, que se prolonga no tempo, se mostra concertada e, na qual, os
seus autores só mudam porque se sucedem uns aos outros.
Procurei salvação em sede própria – os
Tribunais. Que lucrei com isso? – O resultado tem sido este: atrasos;
incidentes; custas ditadas com fundamentos que são autênticos caprichos;
omissão de diligências úteis à descoberta da verdade material, uma delas quanto
ao que pode ter sido uma tentativa de homicídio exercida contra mim;
distribuições de processos que desafiam a lei das probabilidades; um
conhecimento oficioso a actuar quando devia e quando não devia; deturpações da
matéria de facto; notificado de que no passivo do arguido não entra o que ele
despende em juízo; condenado uma vez por facto de terceiro, e noutra ocasião
sem ter sido constituído arguido; decisões obrigando os meus patronos a
viajarem escusadamente até S. Miguel; recusas em custear as minhas despesas de
deslocação a S. Miguel, com o MP promovendo que eu viajasse a crédito, sem me
esclarecer como pagar depois a passagem aérea; despachos judiciais indeferindo
a mesma pretensão, um deles sem ouvir testemunhas que dariam fé da minha
insuficiência económica e o outro com notório falseamento do que aleguei,
pondo-me a comer à razão de €15,00 por mês, o que nem na cozinha económica se
consegue, e qualquer criancinha do ensino básico sabe que, em cantinas
subsidiadas pelo Estado, também não chega; nulidades insanáveis ocultadas;
prejudicado, em altíssima instância, por dois casos julgados formais, que foram
contraditórios; um recurso perdido, com todas as consequências legais, porque o
Tribunal Constitucional arbitrariamente não conheceu do seu objecto; enfim,
estas são algumas das pedras preciosas encastoadas numa coroa que me pesa muito
porque não é pouco o que me custa em dinheiro e amargura. De todo o cortejo de
desmandos e de temerárias ousadias contra a pureza das leis, que me amolgaram
económica e animicamente, é um pálido resumo o que aqui ofereço. Mas tudo isto
que revelo e o que está por relatar, não fugirei a provar se a tanto for
intimado.
Durante larguíssimo tempo, olhei
severamente aqueles Tribunais onde se julgam os chamados crimes de guerra. Os
que ali respondem são os vencidos e, na bancada reservada aos Juízes, só se
sentam os do bando vitorioso. Contudo, o dobrar dos anos e um reflectir mais
aturado corrigiram-me: esses Tribunais têm o mérito assinalável de nos mostrar
que imparcialidade, no âmago do conceito, é característica que não existe no
seio da Judicatura. Não existe ali, nem se encontra em parte alguma.
Mas regressando ao domínio que, neste
momento, nos há-de preocupar, isso também não constitui obstáculo a uma decisão
equitativa. No dia em que se formasse um Tribunal imparcial, nesse mesmo dia
ele deixaria de ter sentido. Pouca ou nenhuma falta faz, invocar o caso extremo
da guerra para compreender que a imparcialidade requer do julgador uma ascese
apuradíssima, apenas viável se a sociedade, à sua volta, fosse também ela um
corpo sem mancha. Seria o Paraíso, onde se acabam todos os litígios porque aí é
a Caridade que impera. No mundo que nos é dado viver, o que há de reprovável na
administração da Justiça, não é propriamente que os Magistrados estejam
sujeitos a influências endógenas e exógenas, que inevitavelmente actuam e os
condicionam. Isso, quanto a mim e como venho dizendo, é uma fatalidade. Grave,
realmente condenável, é quando esses Magistrados se movem por favor, ódio,
dádivas ou presentes, e ainda se, conscientemente, decidem contra direito. Isto
tem nome – é denegação de justiça e prevaricação. Constitui crime. E, um após
outro, arrastaram-me até aqui.
Sempre que os poderes públicos falham na
protecção devida aos particulares, devolve-se a estes, por lei natural, o
direito de legítima defesa. E se o incumprimento dos órgãos competentes, mais
do que falta de tutela dos interesses daqueles que clamam por Justiça, se
converte numa perseguição inequivocamente agressiva, como largamente tem
sucedido comigo, que espanto pode causar que os lesados por esse modo usem de
meios nem sempre institucionais? Quando nos vemos diante de um quadro onde já
nem sequer o Direito é aplicado, por incúria ou por maldade daqueles a quem
incumbe fazê-lo, será razoável acreditar que esses prevaricadores voltem a
pisar os trilhos da Justiça? – Duvido sinceramente que se possa responder
afirmativamente!
A sociedade portuguesa padece de um
imenso mal: as classes de cujos grémios saíam as figuras de proa na vida
nacional, por vezes sem outra explicação mais que não fosse a que tem
subjacente um infeliz fenómeno de inércia, classes que davam os elementos
politicamente dirigentes e economicamente dominantes, essas classes
extinguiram-se! A tragédia, a falar verdade, não está certamente aqui. O que
nos deve afligir é a carência de qualidades naqueles que vieram ocupar os seus
postos: só não merecem nota de absoluta nulidade, porque o nada não existe. No
universo da administração da Justiça é onde isso se torna mais chocante e
inquietante: aí, o mal assume proporções assustadoras porque sem dúvida os
Tribunais são, como mais que uma vez lhes tenho chamado, aquele ádito sagrado
onde os povos depositam a sua esperança de uma ordem justa, e que olham como
paládio das suas liberdades e garantias.
No meio do desacerto, a que se chegou,
é-me completamente indiferente a sorte que possa ter. Nem esperem ouvir de mim
qualquer pedido de clemência, porque só é clemente quem conhece a Justiça. E, a
avaliar pelos precedentes, já não sei a quantos Tribunais de Portugal restará
ainda a noção do que esse valor significa! Temo que serão poucos, muito poucos
mesmo. Se eu tiver a sorte de estar diante de um desses, também será
desnecessário que grite por clemência, porque não há Justiça onde não houver
misericórdia, e só com misericórdia se realiza Justiça. Caso seja o Tribunal,
que me julga, um dos últimos que ainda guardam intacta a antiga honra da
Magistratura Portuguesa, impoluta como poucas segundo reza a fama, se for um
desses, então certamente alcançarei Justiça. Portanto, será supérfluo o pedido
de clemência onde já reina a Justiça.
De resto, há outra razão pela qual não
grito por clemência: a minha consciência não me acusa de nenhum acto imoral, e
a observância da ética é a minha maior preocupação. Posso escutar e até seguir
a voz de varões doutos e íntegros; mas não recebo lições de um sistema que é
subversão dos mais sagrados valores espirituais, e negação violenta de
interesses materiais fora de toda a dúvida.
A situação nacional, desde as altas
esferas do poder até ao mais rasteiro do quotidiano, é filha da traição,
de uma grande traição, a mais negra e feia traição que já se abateu sobre a
terra portuguesa. Nada me podem ensinar os campeões desta traição e da miséria
moral que a acompanha, mesmo que eu, falido de brios ou perdido o juízo,
quisesse aprender com eles. É que os códigos de Direito não constituem os
principais elementos estruturantes do carácter de uma pessoa, até quando as
leis são reflexo do que há de positivo e saudável no povo onde vigoram. Num
plano ideal, é o sentimento jurídico que cria a lei e nunca o contrário. Agora
que a iniquidade institucional veio dar o tom ao comum do nosso viver, pouco
valor encontro nas leis que nos regem. Com efeito, o sentido da virtude e da
honra, só a doutrina religiosa e a moral doméstica são capazes de o incutir.
Era no seio da família, nas palavras com que as Mães embalavam seus filhos, que
essa catequese actuava desde a mais tenra idade. Mas a família, feita pedaços
pelo divórcio, confundida nas uniões de facto, desfigurada nas parelhas
homossexuais, muitas vezes açougue de carne humana inundado pelo sangue
derramado no aborto, e também a família, sem consciência e sem pudor, capaz das
mais baixas vilezas, como é exemplo aquela à qual teimam em associar-me, essa
já não é a família como Cristo manda.
Antes de terminar, seja-me permitida uma
rápida excursão por terrenos da teologia, que é afinal o catecismo que procuro
seguir:
Não me declaro contrito pelo que fiz
desde o início da tristíssima história que aqui me trouxe. Confessar
arrependimento, pressuporia que me reconhecia culpado. Ora, a este respeito, já
disse o suficiente: nem a acusação, à qual respondo, se funda em qualquer
crime, como julgo demonstrado pelo que aleguei no princípio desta minha defesa;
nem será curial ignorar quanto está para trás das palavras que acompanharam o
simples envio de umas meias, facto ao qual a acusação atribui dimensões de uma
injúria que não existiu.
Bem feitas as contas, o prejudicado
tenho sido eu como largamente transparece do que venho desenvolvendo. Não
tenho, pois, desculpas a apresentar. Mas também não procuro exercer represálias
sobre quem quer que seja. É um propósito que nunca coube no meu coração, e que
a minha inteligência abomina. Se eu for tão desventurado que um dia se
desvaneça a moral na qual me formei, espero ao menos que não se apague a luz da
minha razão, e consequentemente me mantenha capaz de continuar a ver que a
vingança é fria, nada produz e tem absolutamente de ceder lugar ao perdão.
Quando a religião prega a necessidade de
pôr em prática esta virtude, enuncia um princípio de transcendente sabedoria.
De facto, não há compensação para a ofensa recebida, se abafarmos o perdão.
Nenhuma injúria, física ou moral, encontra satisfação plena a troco de uma
indemnização imposta ao culpado, por mais volumosa que seja. Sempre fica algo
por pagar. Só o perdão pode preencher esse vazio. É claro que isto não anula o
direito a uma justa reparação2, pelo que, sem confundir-se com a
pena de Talião, se torna manifesta a admissibilidade da luta em defesa dos
legítimos interesses do ofendido. Contudo, essa acção só é perfeitamente
remuneradora com o suprimento do perdão.3
O lesado nos seus direitos, que se
declara integralmente compensado a partir do momento em que o prevaricador paga
pelo dano provocado o montante que os Tribunais fixarem, confessa tacitamente
que os seus bens, mesmo os mais valiosos, se permutam a troco do castigo infligido
ao devedor da reparação. Demonstra com isto que não houve ofensa, mas sim algo
equiparável a um negócio livremente celebrado e que até podia ser prévio à
ocorrência geradora desse ressarcimento. Sucede, porém, que se torna razoável
duvidar da validade desse negócio, porque não é líquida a licitude do seu
conteúdo. Mas isso é outra questão. Antes, o que logo resulta é que nunca se
alcançará paridade entre punição e ofensa, pelo que nenhuma acção humana, seja
prisão, indemnização por dinheiro, ou as duas coisas juntas, nenhuma sanção
punitiva contra o causador do mal, insisto, bastará para fazer regressar a
vítima ao estado em que se achava antes da lesão sofrida.
Pergunte-se à mulher violada se recupera
o equilíbrio com a paga da indemnização ordenada por tribunal; procure-se saber
se os pais de menor desviado para a prática de abuso sexual, se dão por
compensados quando recebem o dinheiro que o criminoso é condenado a entregar;
apure-se, também, se o proprietário roubado em bens de inestimável valor afectivo
se dá por satisfeito com a quantia que recebe do ladrão, em paga do que foi
subtraído e cujo rasto se perdeu; investigue-se, por fim, se a vítima de
injúrias encontra conforto na remuneração monetária. Se responderem que sim, se
declararem que se sentem plenamente reintegrados na situação em que estavam,
então eu direi que essa mulher não foi violada, mas sim que se prostituiu;
esses pais nada sofreram com a desgraça do filho, porque o venderam; o dono dos
bens roubados não foi assaltado, visto que alienou a título oneroso aquela
parcela do seu património; e o ofendido pelos insultos não tem de se queixar,
uma vez que trocou honra por uns cobres.
A História – e aqui já interfere a Fé
porque agora falo como católico – só regista um caso em que o pagamento foi
equivalente ao dano causado: refiro-me, como é bom de ver, ao sacrifício do
Calvário. Uma ofensa infinita, porque feita a Deus, tinha de ser expiada de
forma também infinita. É a única vez, única e irrepetível, em que houve uma
correspondência total, porque o pagador foi o próprio Deus --- a teologia
chama-lhe mérito ex toto rigore iustitiae. Se descontarmos isto, nenhuma
outra penitência realizada pelos mortais, por maior dimensão e intensidade que
tenha, chega para apagar os pecados que diariamente todos cometemos: salva-nos
a misericórdia alcançada naquele momento em que foi dada satisfação integral
pela nossa dívida!
Perdoar, há muito tempo que perdoei.
Perdoei logo que começou este desaforo. Mas não desistirei de alcançar o
reconhecimento de que, ao longo deste tormentoso combate de catorze anos, a
razão esteve do meu lado. Até atingir esse objectivo, continuarei a lutar!
Joaquim Maria Cymbron
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- D. 1.1.1 pr.
- Cfr. João Paulo II - Dives in Misericordia, VII, 14.
- Cfr. Sl. 102, 8-10; ib. 142, 2.
JMC