Toreador

Não é difícil perceber a razão pela qual se insere, aqui, uma das mais famosas árias do panorama operático --- https://www.youtube.com/watch?v=fOxDzDyLEMQ

domingo, 18 de agosto de 2013

UM CONSELHEIRO "MODELAR"


Excelentíssimo Senhor Juiz-Conselheiro Alfredo José de Sousa
 

Senhor Conselheiro:

Há poucos dias, fui surpreendido com um ofício (1) remetido da Provedoria de Justiça, com assinatura de V. Ex.ª. Digo surpreendido, porque não possuo a menor ideia de ter enviado a petição à qual o ofício pretende ser resposta. Estou convicto de que esse documento levou em conta um texto meu publicado neste blogue, imediatamente abaixo das linhas que agora escrevo, e que não devia ser apreciado antes de formalmente apresentado perante V. Ex.ª * É verdade que, num curtíssimo preâmbulo desse texto, eu indico que se trata do conteúdo de uma petição dirigida a essa Provedoria. Foi erro meu: a petição, que remeti nessa data, era cópia de outra submetida à apreciação de V. Ex.ª, relativa ao artigo 64.º do CPP, e que eu imaginava perdida porque não tinha notícias dela.

Já requeri à Provedoria de Justiça que aclare o que para mim não deve passar de uma confusão burocrática. No entanto, é um facto a existência do ofício, como é certo que a condizer substancialmente com tal ofício existe um articulado que preenche, relembro, o anterior texto deste blogue. Por isso, não é prematuro responder já ao que recebi.

O conteúdo e significado deste ofício não me honra, é força confessá-lo. Com efeito, ele reduz-me à mais ínfima insignificância.

Abre V. Ex.ª o harmonioso hino ao Direito que é todo este ofício, declarando que eu não citei nenhuma «regra ou princípio constitucional que considere estar a ser violado.» E diz que isso é concludente, embora sem indicar de quê. Para mim, concludente é que V. Ex.ª não olhou para o artigo 24.º da petição que está no blogue (a única que reconheço como de minha autoria, até prova em contrário). Mas qual a importância de que se reveste isso? Só para um espírito tacanho como o meu é que o disposto no CPP art. 134.º, n.º 1 está viciado de  inconstitucionalidade! Apenas um excesso de rigor comporta a ideia de que a evidência dispensa prova e alegações, se tivesse sido o caso de isso ter faltado (2)!

Saboreei a classificação de testemunho forçado (3). Forçado, Senhor Conselheiro, forçado tenho sido eu e há longuíssimo tempo: forçado a suportar iniquidades clamorosas, praticadas por gente de toda a espécie, e sustentadas por autênticos destemperos de alguns magistrados nas decisões que tomam. É óbvio que V. Ex.ª está fora desta última galeria: seria de uma cruel severidade incluir ali quem produziu tão notável monumento jurídico como é o ofício de que falamos.

Discorre seguidamente V. Ex.ª sobre o fim da norma que confere, às pessoas previstas no CPP art. 134.º, n.º 1, o direito de recusarem depor como testemunhas. E, concretizando, situa a ratio legis no «conflito possível entre os afetos (em geral profundos mas também complexos, numa relação familiar) e a verdade material que se julga acautelar, colocando na esfera individual da (possível) testemunha a decisão sobre a conduta a tomar.» Sublime! Só espíritos muito avaros em prodigar o merecido aplauso poderão deixar de reconhecer que aqui foi V. Ex.ª verdadeiramente genial. Graças ao apurado sentido das proporções requeridas por uma sã administração da Justiça, e também devido a uma correcta avaliação dos sentimentos humanos na família, predicados de que V. Ex.ª anda cheio, fico a saber que a testemunha, eventualmente, se irá debater  num terrível drama afectivo.

Quanto amor se derramará nessa conjuntura! A testemunha  sente-se dilacerada se o que a arrolou é arguido; basta, porém, que quem peça a sua comparência em juízo não seja o arguido, mas sim o assistente, e aí vemos a angústia da testemunha ser ignorada pela lei, que já não lhe consente recusar o depoimento. Portanto, os sentimentos da testemunha oscilam com o que fixa o direito.

Não compreendo esta teoria, que se me afigura assimétrica. Assimetria, numa estrutura que V. Ex.ª apoia com tanto brilho? Que exagero! A culpa há-de caber-me indubitavelmente, pouco bafejado que sou pela fortuna da inteligência. Então eu não enxergo que, se o sujeito processual é arguido, a testemunha sente falar alto a voz do parentesco e, quando o mesmo sujeito é assistente, já se apagam as suaves notas dessa voz? Não alcanço que ir alguém a juízo, para com o seu depoimento contribuir para uma eventual absolvição do parente arguido, será incorrecto se vai a contragosto, mas que já não constitui mal ser-se compelido a testemunhar a favor do parente ofendido? Sou tão desprovido de perspicácia a ponto de entender que condenar um inocente não é mais grave do que quando o tribunal deixa sem satisfação a vítima? Como será possível que eu não veja nenhuma destas coisas?

Apesar de limitadíssimo nas minhas faculdades, gosto de mergulhar na história do nosso direito. O que ali encontrei não foram propriamente  ninharias. Sabe V. Ex.ª? Um desgraçado como eu com pouco se contenta. Por isso, será melhor alinhar o que descobri para que se julgue. Ei-lo:
 
  1. As Ordenações Filipinas dispunham que «o irmão não póde ser testemunha, nem será geralmente perguntado no feito do irmão, por elle, nem contra elle, se o que se dá por testemunha, está debaixo do poderio e governo do irmão por quem, ou contra quem se requerer ser perguntado: ou se o feito em que he dado por testemunha he crime ou civel, em que se trate e mova questão de todos seus bens, ou maior parte delles.» (4) 
  2. Mello Freire apontava os que, em determinadas causas (certis in causis), eram rejeitados como testemunhas: «frater in fratris causa tam criminali, quam civili, magni momenti.» (5)
  3. em plena época do individualismo trazido pela ordem liberal, vemos Pereira e Sousa sustentar que não podem ser testemunhas, por proibição legal relativa, «os irmãos nas Causas dos irmãos quando estão debaixo da sua tutéla, e administração.» (6)
  4. Corrêa Telles também subscreve que «(…) são repellidos de testemunhar», entre outros «o irmão na causa do irmão, se estiver debaixo do poderío e governo d’este; ou se a causa for crime, ou civel, que verse sôbre todos, ou sôbre a maior parte dos bens.» (7)
Neste regresso ao passado, parece líquido que as mais fundas raízes do direito pátrio legislado, a par de doutrina muito autorizada, vão no sentido de não ser absoluta a proibição de os irmãos deporem como testemunhas. Uma hermenêutica, baseada no argumento a contrario sensu, mostraria de forma inequívoca os casos em que essa interdição cessava. E imediatamente esses inábeis passavam a estar sujeitos ao dever geral de testemunhar. São muitos, Senhor Conselheiro! E nem sequer me socorro de que «nas causas entre parentes muitas vezes as melhores testemunhas são os outros parentes» (8) porque as circunstâncias nas quais é meu propósito levar a que tenham lugar os depoimentos, que ferem a sensibilidade de V. Ex.ª, não estão na zona defesa: res inter fratres non sunt! (9) 

 Porquê esta rápida excursão pelo nosso pretérito direito? --- Seria para esperar que V. Ex.ª tivesse compulsado este material e sobre ele discorresse com um fio de lógica, deste modo evitando verter o que críticos venenosos qualificarão de desatino primário no despacho do ofício a que respondo? E, depois disso, admitir até a discordância de V. Ex.ª a respeito da minha posição, o que certamente seria feito com fundamentos carregados de uma riqueza dogmática muito distinta do quadro desolador que V. Ex.ª ofereceu no infeliz despacho que tratamos? Para alguns, aguardar isto de  V. Ex.ª é demasiado: seria o mesmo que contar ouvir uma deliciosa sinfonia composta por quem não é capaz de tirar, das cordas de uma guitarra, mais do que um fado de Lisboa, que é sempre música triste e melodicamente pobre. Mas esses, Senhor Conselheiro, estão repletos de má fé!

Antes de terminar, convido V. Ex.ª a ponderar o que vem estabelecido no CPP art. 402.º, n.º 2, al. b) e al. c). Não sei se valerá de muito. De todas as maneiras, faço-o porque creio cumprir assim um dever de elucidação que há-de aproveitar a alguém. Temos, então, que o estatuído pela lei processual penal (10), nos preceitos que invoco, traz à evidência a estreita conexão que liga as figuras do arguido e do responsável civil, ainda quando o sujeito processual não é o mesmo. Que dizer, pois, se o responsável civil é o arguido e só o arguido, nos casos em que o pedido de indemnização é deduzido em separado?
 
Inclino-me, repito, para que seja nula a eficácia deste apelo. Pelo menos, no ofício sumário que me chegou às mãos, nem palavra a respeito de um possível conflito dentro da mesma causa, gerado pela oposição de decisões sobre a vertente criminal e a vertente civil que houver de tratar, conflito esse que eu assinalei (11). V. Ex.ª dava a impressão de ter uma única preocupação: negar procedência ao que eu alegava contra a faculdade de recusa de depoimento testemunhal por parte dos parentes e afins no 2.º grau da linha colateral. A somar ao clamoroso erro de que omiti a indicação da norma constitucional violada, V. Ex.ª ignora a minha censura sobre o que é, sem sombra de dúvida, o ponto mais vulnerável do regime legal deste instituto.
 
Em tudo quanto desenvolvi na petição, V. Ex.ª não viu mais do que uma violência. Só faltou chamar-lhe inquisitorial. Ficou a perder. Porque nos tempos, que correm, de horizontes rasgados (tão rasgados que tenho dificuldade em ver costura que lhes valha), cai bem essa linguagem. Foi pena, Senhor Conselheiro!
 
 
Joaquim Maria Cymbron
 
 
* Passadas quase três semanas, a Provedoria de Justiça veio finalmente juntar prova de como havia recebido, expedida por mim, a minuta que eu pensava não ter chegado a enviar. Foi, portanto, meu o erro que levou à surpresa manifestada no início deste texto.
    De todos os modos, conforme eu esperava, quanto à questão de fundo nada se altera, pelo que se mantém o conteúdo da resposta ao infeliz e desastrado ofício que teve a assinatura do Ex. mo Conselheiro Alfredo José de Sousa. E a invocação feita no art. 24.º da petição, lá está conforme categoricamente afirmei.
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  1. V. infra.
  2. Na realidade, aqui não estamos verdadeiramente diante de nenhum facto notório, como o define a lei no CPC art. 514.º, n.º 1 e cuja redacção passou à nova versão (art. 412.º, n.º 1). É, porém, sabido que os tribunais julgam sobre a prova produzida. E a prova testemunhal, se não é a mais estimada das provas, constitui por certo uma prova de eleição. De modo que permitir a recusa de depoimento às testemunhas arroladas pelo arguido, tal como o estatui o CPP art. 134.º, n.º 1, al. a) e al. b), é uma limitação abusiva do seu direito à defesa!
  3. O negrito é meu.
  4. Op. cit., Livro 3, Tit. 56, 2, Ed. Cândido Mendes de Almeida, Rio de Janeiro, 1870. O sublinhado é meu. Aqui se reproduz quase ipsis verbis o disposto nas Ordenações Afonsinas (Livro 3, Tit. 51, 13); e nas Ordenações Manuelinas (Livro 3, Tit. 42, 14).
  5. Institutiones Iuris Civilis Lusitani, Lib. IV, Tit. XVII, § II. O sublinhado é meu.
  6. Primeiras linhas sobre o procésso criminal, terceira edição emendada, e accrescentada, Lisboa, 1820, cap. XXVI, § CLXXXV, III. É, afinal, a opinião que ele também defende nas Primeiras linhas sobre o processo civil, n. 477. O sublinhado é meu.
  7. Digesto Portuguez, I, 975, 3.º O sublinhado é meu. Curiosamente, este autor repete, quase ipsis uerbis, o que, a este propósito, estabeleciam as Ordenações Filipinas.
  8. Coelho da Rocha --- Instituições de Direito Civil Portuguez, I, § 184.
  9. Resta acrescentar que a própria lei civil, anterior ao código vigente, não feria os irmãos de incapacidade legal para testemunhar (Código de Seabra, art. 2511.º). Este preceito veio a ser substituído pelo CPC/1939 (art. 624.º). Em 1961, mantém-se o regime no que aos irmãos diz respeito. Pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, este novo código dá-lhe outra configuração, a qual, não obstante uma alteração insignificante operada pelo Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro, persistiu em linha ininterrupta até se fixar na versão actual (CPC/2013 art. 497.º). Nesta redacção, o regime é o mesmo de sempre, o que logo se vê quando exclui os irmãos de entre os que se podem recusar a depor em juízo, mostrando tal solução ipso facto que a lei não considera esse parentesco causa que os liberte do dever geral de testemunhar. A este argumento da recusa legítima em processo cível, não deixei de aludir na minuta da petição dirigida à Provedoria de Justiça (it. 28.º)
  10. Por lapso, em vez de penal seguiu civil.
  11. Artigos 25.º e ss. do articulado no texto anterior deste blogue.




JMC