Segue-se a reprodução de uma carta, por mim enviada a um Magistrado do MP. Fora alguns ajustes de redacção, a carta nada padece na substância do seu conteúdo!
Comarca X
DIAP Y
P. Z
Ex.mo Procurador-Adjunto da República
V.
Ex.ª, Senhor Procurador, parece insistir num passado de má nota, sempre que nos
cruzamos em juízo. Com o despacho, que me leva a escrever-lhe, é já a segunda
vez, pelo menos, em que V. Ex.a intervém como Magistrado,
respondendo eu nesses processos. Formam essas acções, a par de muitos outros
exemplos vividos aqui e acolá, um quadro deplorável que põe, a nu, um autêntico
desastre jurídico e moral.
Há algum tempo que foi o primeiro dos casos, nos quais V. Ex.a foi protagonista. Por isso, aqui lhe desperto a memória:
Esse primeiro caso aconteceu quando V. Ex.a teve a peregrina ideia de ir buscar factos ocorridos num processo instaurado, contra mim, em 1986. O referido processo foi o segundo dos dois que me opuseram, numa longa pugna judicial, ao Dr. Mário Soares, Primeiro-Ministro no início da luta, e Presidente da República a partir da data que mereceu a atenção de V. Ex.a Um dia, espero bem, toda a sequência processual do pleito, em que enfrentei aquele político, há-de ser historiada, para que não se perca o drama judiciário de um assunto sério, transformado numa das mais acabadas comédias, levadas à cena por tribunais portugueses.
Devo confessar-lhe, Senhor Procurador, que muito me apraz ver o seu empenhamento neste episódio da minha vida. Sou sincero: deu-me uma satisfação imensa que o fosse exumar. Tal atitude não me surpreende, nem me perturba: desde então, nunca me alheei de que venho pagando pelo que gostosamente fiz. Cumpre acrescentar que ver uma remissão para esses litígios já antigos e sepultados, vem provar que a Maçonaria não esquece nem perdoa. E essa perseguição só me honra. Quando V. Ex.a tinha tanto por onde se decidir, ir pegar justamente por ali, é bastante sintomático.
V. Ex.a continua a ter uma vasta área onde colher e amontoar elementos para demonstrar que sou um rebelde. Prossiga no intento, Senhor Procurador! Não serei eu quem o desminta: o meu passado, sobretudo desde o 25 de Abril até hoje, é efectivamente o trajecto de um rebelde. Que outra coisa é lícita, a quem moldou o seu carácter no desejo de servir e nasceu com temperamento de lutador, se vive numa época em que o Mal achou o seu código e este é o que dita leis às multidões? Acrescento mais isto, Senhor Procurador: vista a questão em termos absolutos, eu sou pela ordem; contudo, diante da iniquidade instalada só tenho um caminho a seguir: o da revolta!
Sei, Senhor Procurador, do escândalo e desagrado que lhe causo se me ouve afirmar que não me dobrarei diante de V. Ex.ª nem de mais nenhum poder do Mundo, entendido este termo na acepção bíblica. No processo, a que agora me refiro, V. Ex.ª reagiu a essa posição de modo bastante negativo. Esclareço, porém, que não está nos meus propósitos mudar de atitude, adiantando para o efeito que não conto vir a inclinar-me perante a prepotência, venha ela dos conventículos maçónicos ou de qualquer outra banda. Finalmente, confio que Deus me concederá a fortaleza necessária, para ser fiel aos princípios em que fui educado e continuam a formar-me.
Passemos ao que é, por ora, o último acto do tristíssimo percurso, para o qual chamei a atenção de V. Ex.ª nas linhas que abrem esta peça. Refiro-me ao despacho que subverte por completo a letra e o espírito da norma contida no CPP art. 98.º, n.º 1. Não se trata apenas de uma pobríssima hermenêutica: a explicação, forçosamente, há-de encontrar-se no sôfrego desejo de servir interesses e preconceitos intoleráveis.
Em Ponta Delgada, atravessou-se uma fase na qual os Ex.mos Magistrados do MP eram em dobro (ou mais ainda) do número somado pelos Técnicos de Justiça. Desconheço a proporção actual, mas parece que já melhorou.
Vim, entretanto, a saber que nessa Instância Central está o MP razoavelmente servido em quantidade. Deste modo, era de esperar que eu ficaria privado de me encontrar com V. Ex.ª na barra do Tribunal. Foi isso que se verificou, o que me causou forte pena. É que, Senhor Procurador, muito teria eu gostado de o avistar no julgamento, para dessa maneira estar frente a frente com quem adopta um modo de actuar idêntico àquele que eu imputei ao M.mo Juiz que me moveu este processo.
Com efeito, a malícia do proceder de V. Ex.ª difere apenas em grau. V. Ex.ª tem ainda muito a aprender com o presumido ofendido nos autos acabados de julgar em primeira instância.1
Por presumido, que nada perca, embora o certo seja que não vale tanto quanto presume. Mesmo assim, sempre provoca maior dano que V. Ex.ª Por isso lhe recomendo, Senhor Procurador, que esteja atento às práticas daquele M.mo Juiz. Seguindo este caminho, não é impossível que V. Ex.ª venha a subir em iniquidade, conquanto desça na escala dos valores morais.
Deste modo, os dois ficarão a par no mesmo degrau da infâmia. O pior será, se ele baixa no vício. Nesse caso, não terá V. Ex.ª outro remédio que não seja o de continuar a atolar-se ainda mais, para não romper o nó que os vai unindo na rota da perversidade.
Tenha, Senhor Procurador, em muita estima esta companhia. Não é todos os dias que se marcha ombro a ombro, ao lado de alguém com tão fundadas esperanças de ascender às mais altas dignidades dentro do sistema que nos asfixia.
Mas, Senhor Procurador, tem V. Ex.ª um mérito que não lhe posso negar: V. Ex.ª é um jurista de polpa!
Porque digo eu isto? Simplesmente pelo facto de ter descoberto que o meu direito de agir, nos termos prescritos pelo CPP art. 98.º, n.º 1, não é incompatível com uma série de outros preceitos que acautelam as garantias de defesa de qualquer arguido. É ou não fabuloso este despacho? Merece ou não os louros que coroam as frontes dos sábios e dos predestinados?
Que significa tal despacho? Se o direito invocado por mim não é incompatível com toda a lista que V. Ex.ª estendeu diante dos meus olhos ávidos de sublimidades, então o inverso não é também certo? E se é o caso, por que razão não foi atendido o meu requerimento? V. Ex.ª despacha neste sentido e fica-se em vinte-sete para não passar. Foi a primeira vez que um requerimento, por mim elaborado entre muitos com a mesmíssima pretensão e articulado em conformidade ao que prescreve o CPP art.º 98.º, n.º 1, é rejeitado.
A lei, Senhor Procurador, a lei que é a nossa porque é a lei portuguesa, dispõe que «o arguido, ainda que em liberdade, pode apresentar exposições, memoriais e requerimentos (...), embora não assinados pelo defensor, (...)». Assim reza o preceito, citado apenas no que tange à matéria que se debate (o negrito é meu).
Perante isto, que importa se eu estava ou não representado por um defensor constituído ou nomeado? Repito a pergunta, noutros termos: Se o legislador dispensa a assinatura de um defensor para a validade de actos realizados em perfeita consonância ao que ali se estatui, como é possível que o meu requerimento tenha sido indeferido?
Senhor Procurador, eu respondo já:
A regra é claríssima e não requer grande esforço de interpretação. Seria até entendida pelo homem médio. Aí estará, muito naturalmente, a explicação para o comportamento de V. Ex.ª É sabido que V. Ex.ª não se confunde com o homem médio: moralmente, até é capaz de estar uns furos bem abaixo dele. Digo isto, embora não esqueça a crise de valores, que aflige a sociedade inteira na época presente. Mesmo assim, mantenho o juízo proferido, porque o sentido do justo, apesar de muito abalado, ainda vai perdurando, e também pela dignidade institucional de que se reveste V. Ex.ª, circunstância esta que agrava obviamente qualquer desvio ao Direito. Portanto, em comparação ao homem médio, V. Ex.ª sai francamente a perder, pelo menos se contamos por estas provas dadas.
Uma decisão contra legem, da autoria de quem serve a Justiça, integra o crime de prevaricação. Se essa decisão é tomada para prejudicar ou beneficiar alguém, o crime assume proporções mais graves. No caso, que me tocou em sorte ou por desgraça, não foi certamente por favor que V. Ex.ª indeferiu o meu requerimento: ninguém se acha favorecido se é contrariado, maxime em ponto tão importante. E se não foi no intuito de me prejudicar, que V. Ex.ª se moveu, temos então que faltou inteligência ao despacho que ataco. Solução que briga claramente com a destacada posição de V. Ex.ª no quadro judiciário. Não posso crer em tamanha ingenuidade. Por isso, a minha convicção é a de que são fortíssimos os indícios de que V. Ex.ª agiu com um acentuado dolo específico.
Eis a sua obra, Senhor Procurador: sinal inquietante da degradação a que chegámos, dentro de alguns tribunais e fora deles, continuando assim a escrever-se mais um capítulo na desoladora história que se desenrola diante dos nossos olhos, cansados de tanta torpeza.
Ao que V. Ex.ª praticou, chamo eu "crime inocente" porque, nos anais judiciários, não se descortina notícia de um só Magistrado condenado nos termos do CP art. 369.º, nem mesmo ao abrigo do que previa e punia o artigo 284.º do velho Código de 1886. Era, então, ainda mais difícil porque, nessa altura, não bastava o dolo genérico. Se, como está, é o que se sabe, então ainda pior. Esta impunidade concreta existe, pois, ante et post 25 de Abril. Nada tem a ver com quadros políticos!
Joaquim Maria Cymbron
- Tenha-se
em consideração a data dos eventos e a da publicação deste texto.
JMC