Toreador

Não é difícil perceber a razão pela qual se insere, aqui, uma das mais famosas árias do panorama operático --- https://www.youtube.com/watch?v=fOxDzDyLEMQ

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

UM CONSELHEIRO ESTUPEFACIENTE


Excelentíssimo Senhor Juiz-Conselheiro Alfredo José de Sousa

Senhor Conselheiro:

Enganei-me quando lhe chamei modelar, Senhor Conselheiro: V. Ex. é estupefaciente porque o seu comportamento transporta uma série de actos que provocam estupefacção.

Está hoje reformado. Por isso, já não interessa muito apurar se é V. Ex.ª uma dose de estupefaciente em grau que proibisse o consumo. De resto, haverá algum magistrado que prevarique?--- Qual quê! A que propósito se vai censurar um magistrado? É uma classe que não comete deslizes, não erra, nem viola a lei. E o mais curioso de tudo é que, no meio de vós, se encontra quem moteja a Igreja Católica por se considerar infalível, em matérias bem determinadas e cumpridos prévios requisitos. Mas convosco é diferente: sois puros, quase ou mesmo impecáveis.
Todos vemos que assim é. Portanto, não adianta perder mais tempo com isto e o que há a fazer é ir em frente.
Não espero que V. Ex.ª se desculpe pelo facto de ter sido por mim invocado o preceito constitucional ofendido pela norma contida no CPP art. 134.º, n.º 1, al. a) e al. b), contrariamente ao que V. Ex.ª sustentou. Não o espero, com efeito.
Três são as razões:

A primeira está em que, afinal, a omissão de V. Ex.ª que mal fez? Isso de citar a lei, para que serve? São minúcias de diletantes ociosos e sabido é que de minimis non curat praetor.
A segunda prende-se com a certeza de que essa alegação está debaixo dos olhos de toda a gente que ler a petição. Ora V. Ex.ª não é toda a gente: V. Ex.ª é um magistrado.
Por fim, a terceira, que é a mais importante, arranca da minha convicção de que desculpas só as pedem os que têm a grandeza da simplicidade ou, se V. Ex.ª preferir, a simplicidade que apenas a grandeza moral confere. E grandeza desta espécie é predicado que falta a muitos magistrados, em cujo número me parece não ser excessivo incluir V. Ex.ª.
Quanto ao indeferimento da outra petição --- a que versava o direito de o arguido se defender a si prório --- as pretensas razões que V. Ex.ª apresenta formam um discurso tão alheio ao Direito e à simples dialéctica formal, que eu, por uma questão de higiene mental, me limito a poucos e curtos reparos.

«Os magistrados judiciais podem advogar em causa própria (...)» (EMJ art. 19.º), gozando da mesma prerrogativa os que servem no MP (EMP art. 93.º), regime que tanto aqui como ali não procede a qualquer distinção entre processo-crime e processo-cível, pelo que não restringe o direito em função da natureza da lide. Quer dizer, o que a nossa jurisprudência recusa aos próprios advogados, se for criminal o pleito em que surgem como arguidos, é concedido aos magistrados. Ou não estivésseis vós acima das emoções que abalam e das paixões que turbam o ser humano banal. Não esquecemos que sois especiais: uma raça de casta apurada, a quinta-essência do género humano!
Outro argumento que é usado contra o direito de autodefesa --- e fico-me por aqui porque basta de delírio --- é aquele segundo o qual o regime consagrado no PIDCP art. 14.º, n.º 3, al. d) e al. e) e na CEDH art. 6.º, n.º 3, al. c) e al. d),  apenas permite ao arguido defender-se a si próprio ou ter defensor de sua escolha. Poderia ser um bom exercício de análise gramatical, mas nem isso consegue porque aparece deslocado. Na realidade, a partícula ou é realmente uma conjunção alternativa, mas valer-se da disjunção, isso pertence ao arguido e não aos poderes soberanos dos Estados que  contrataram. Ainda que se desse de barato que estaria observado o espírito daqueles diplomas, desde que o direito interno recusasse ao arguido legitimidade para se autodefender, mas lhe concedesse a faculdade de ser assistido por defensor de sua escolha, mesmo assim deve colocar-se a pergunta: Será tanta a inépcia que não se veja que nem isso se pratica em Portugal? Alguém, com um conhecimento mínimo dos problemas e episódios forenses, ignora que  o defensor é nomeado ao arguido,  que o não elege e que tem de o suportar? É crível que esse desconhecimento parta de um magistrado de tão alta hierarquia, o que infelizmente não constitui caso único?
A mim já não me iludais. Todos que se opõem ao direito de o arguido se defender sem advogado, nunca irão aceitar o sentido que guarda o comando dos diplomas que o contêm. Nada que seja de estranhar. Falei em incapacidade e provavelmente o que existe é um propósito bem definido de adulterar as normas sub iudicio. Que interesses obscuros se escondem por trás de tudo isto?
O actual Bastonário da Ordem dos Advogados é, logicamente, profissional do foro. Com ele discorri, aqui em Coimbra, um bom número de vezes acerca deste assunto. Ainda não estava onde hoje se encontra. Portanto, já lá vão alguns anos. Apesar de tudo, lembro-me que manifestou concordância nesta matéria. Subiu àquele lugar e que aconteceu até hoje? --- Nada. Muito fortes devem ser as resistências!
Haja, pois, decoro. E não se proclame afectadamente que a imposição de um patrono ao arguido, ainda que a contragosto dele, realiza uma medida de protecção aos direitos, liberdades e garantias fundamentais do cidadão, porque os factos, na sua nudez, uma nudez fria e agressiva, geram a suspeita de que bem pode ser defesa, sim, mas dos interesses de uma classe. Ou então calai-vos simplesmente, o que será melhor do que soltar vozes enganadoras!
Por este andar, tempo virá no qual se há-de colocar um tampão na boca do arguido, não vá dar-se o caso de ele pôr na conta mais que o devido, quando usar das faculdades previstas no CPP artigos 63.º, n.º 2; 98.º, n.º 1; 141.º, n.º 5; 343.º, n.º 5; 345.º, n.º 1, in fine *. E tudo isto, em nome de quê? Do que havia de ser? Dos sacrossantos princípios de uma doutrina que afirma respeitar o direito à liberdade, tal como já aconteceu num período crítico da nossa história colectiva, quando um príncipe nascido em Portugal e que voluntariamente se desnaturalizou, intimava os Portugueses de então a que não o obrigassem a empregar a força para os libertar! (1)
O grande Jaime Balmes, a respeito dos despropósitos aos quais certamente já todos assistimos, escrevia que era inútil combater os seus autores pela via do raciocínio, porque «(...) quien ha sido capaz de verter un desatino tan completo no es capaz de comprender la fuerza de la impugnación.» (2) Estamos em presença de outro desconchavo. De qualquer maneira entendi que sempre valeria a pena ordenar estas linhas para esclarecimento de terceiros: o universo é imenso, e nele cabe muito mais do que tudo quanto separa  uma dialéctica, até hoje infrutífera, do lugar em que se situam juízos tacanhos, se não forem maldosos!

Joaquim Maria Cymbron
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* Entre os preceitos legais aqui indicados, por lapso não foram referidos estes: 220.º, n.º 2; 222.º, n.º 2 (nalguns casos); e 361.º, n.º 1.
  1. Chronica Constitucional do Porto, n.º 1, 1832, pp.3 e s.
  2. El Criterio, cap. XXII, § IX.

JMC