Excelentíssimo Senhor Juiz-Conselheiro Alfredo José de Sousa
Senhor Conselheiro:
Enganei-me quando lhe chamei modelar, Senhor Conselheiro: V. Ex. é estupefaciente porque o seu comportamento transporta uma série de actos que provocam estupefacção.
Está hoje reformado. Por isso, já não interessa muito apurar se é V. Ex.ª uma dose de estupefaciente em grau que proibisse o consumo. De resto, haverá algum magistrado que prevarique?--- Qual quê! A que propósito se vai censurar um magistrado? É uma classe que não comete deslizes, não erra, nem viola a lei. E o mais curioso de tudo é que, no meio de vós, se encontra quem moteja a Igreja Católica por se considerar infalível, em matérias bem determinadas e cumpridos prévios requisitos. Mas convosco é diferente: sois puros, quase ou mesmo impecáveis.
Todos vemos que assim
é. Portanto, não adianta perder mais tempo com isto e o que há a fazer é ir em
frente.
Não espero que V.
Ex.ª se desculpe pelo facto de ter sido por mim invocado o preceito constitucional
ofendido pela norma contida no CPP art. 134.º, n.º 1, al. a) e al. b), contrariamente
ao que V. Ex.ª sustentou. Não o espero, com efeito.
Três são as razões:
A primeira está em que, afinal, a omissão de V. Ex.ª que mal fez? Isso de citar a lei, para que serve? São minúcias de diletantes ociosos e sabido é que de minimis non curat praetor.
A primeira está em que, afinal, a omissão de V. Ex.ª que mal fez? Isso de citar a lei, para que serve? São minúcias de diletantes ociosos e sabido é que de minimis non curat praetor.
A segunda prende-se
com a certeza de que essa alegação está debaixo dos olhos de toda a gente que
ler a petição. Ora V. Ex.ª não é toda a gente: V. Ex.ª é um magistrado.
Por fim, a terceira,
que é a mais importante, arranca da minha convicção de que desculpas só as pedem
os que têm a grandeza da simplicidade ou, se V. Ex.ª preferir, a simplicidade que
apenas a grandeza moral confere. E grandeza desta espécie é predicado que falta
a muitos magistrados, em cujo número me parece não ser excessivo incluir V.
Ex.ª.
Quanto ao
indeferimento da outra petição --- a que versava o direito de o arguido se
defender a si prório --- as pretensas razões que V. Ex.ª apresenta formam um
discurso tão alheio ao Direito e à simples dialéctica formal, que eu, por uma
questão de higiene mental, me limito a poucos e curtos reparos.
«Os magistrados judiciais podem advogar em causa própria (...)» (EMJ art. 19.º), gozando da mesma prerrogativa os que servem no MP (EMP art. 93.º), regime que tanto aqui como ali não procede a qualquer distinção entre processo-crime e processo-cível, pelo que não restringe o direito em função da natureza da lide. Quer dizer, o que a nossa jurisprudência recusa aos próprios advogados, se for criminal o pleito em que surgem como arguidos, é concedido aos magistrados. Ou não estivésseis vós acima das emoções que abalam e das paixões que turbam o ser humano banal. Não esquecemos que sois especiais: uma raça de casta apurada, a quinta-essência do género humano!
«Os magistrados judiciais podem advogar em causa própria (...)» (EMJ art. 19.º), gozando da mesma prerrogativa os que servem no MP (EMP art. 93.º), regime que tanto aqui como ali não procede a qualquer distinção entre processo-crime e processo-cível, pelo que não restringe o direito em função da natureza da lide. Quer dizer, o que a nossa jurisprudência recusa aos próprios advogados, se for criminal o pleito em que surgem como arguidos, é concedido aos magistrados. Ou não estivésseis vós acima das emoções que abalam e das paixões que turbam o ser humano banal. Não esquecemos que sois especiais: uma raça de casta apurada, a quinta-essência do género humano!
Outro
argumento que é usado contra o direito de autodefesa --- e fico-me por aqui porque basta de delírio --- é aquele segundo o qual o regime consagrado
no PIDCP art. 14.º, n.º 3, al. d) e al. e) e
na CEDH art. 6.º, n.º 3, al. c) e al. d), apenas
permite ao arguido defender-se a si próprio ou ter defensor de sua escolha. Poderia ser um bom exercício de
análise gramatical, mas nem isso consegue porque aparece deslocado. Na
realidade, a partícula ou é realmente uma conjunção alternativa, mas valer-se da disjunção,
isso pertence ao arguido e não aos poderes soberanos dos Estados que contrataram.
Ainda que se desse de barato que estaria observado o espírito daqueles
diplomas, desde que o direito interno recusasse ao arguido legitimidade para se
autodefender, mas lhe concedesse a faculdade de ser assistido por defensor de
sua escolha, mesmo assim deve colocar-se a pergunta: Será tanta a inépcia que
não se veja que nem isso se pratica em Portugal? Alguém, com um conhecimento
mínimo dos problemas e episódios forenses, ignora que o defensor é nomeado ao arguido, que o não elege e que tem de o suportar? É
crível que esse desconhecimento parta de um magistrado de tão alta hierarquia, o
que infelizmente não constitui caso único?
A mim já
não me iludais. Todos que se opõem ao direito de o arguido se defender sem
advogado, nunca irão aceitar o sentido que guarda o comando dos diplomas que o
contêm. Nada que seja de estranhar. Falei em incapacidade e provavelmente o que
existe é um propósito bem definido de adulterar as normas sub iudicio. Que interesses obscuros se escondem por trás de tudo
isto?
O actual Bastonário da Ordem dos Advogados é, logicamente,
profissional do foro. Com ele discorri, aqui em
Coimbra, um bom número de vezes acerca deste assunto. Ainda não estava onde
hoje se encontra. Portanto, já lá vão alguns anos. Apesar de tudo, lembro-me
que manifestou concordância nesta matéria. Subiu àquele lugar e que aconteceu
até hoje? --- Nada. Muito fortes devem ser as resistências!
Haja,
pois, decoro. E não se proclame afectadamente que a imposição de um patrono ao
arguido, ainda que a contragosto dele, realiza uma medida de protecção aos
direitos, liberdades e garantias fundamentais do cidadão, porque os factos, na
sua nudez, uma nudez fria e agressiva, geram a suspeita de que bem pode ser
defesa, sim, mas dos interesses de uma classe. Ou então calai-vos simplesmente, o que
será melhor do que soltar vozes enganadoras!
Por este andar, tempo
virá no qual se há-de colocar um tampão na boca do arguido, não
vá dar-se o caso de ele pôr na conta mais que o devido, quando usar das faculdades
previstas no CPP artigos 63.º, n.º 2; 98.º, n.º 1; 141.º, n.º 5; 343.º, n.º 5;
345.º, n.º 1, in fine *. E tudo isto,
em nome de quê? Do que havia de ser? Dos sacrossantos
princípios de uma doutrina que afirma respeitar o direito à liberdade, tal como
já aconteceu num período crítico da nossa história colectiva, quando um
príncipe nascido em Portugal e que voluntariamente se desnaturalizou, intimava
os Portugueses de então a que não o obrigassem a empregar a força para os
libertar! (1)
O grande
Jaime Balmes, a respeito dos despropósitos aos quais certamente já todos
assistimos, escrevia que era inútil combater os seus autores pela via do
raciocínio, porque «(...) quien ha sido
capaz de verter un desatino tan completo no es capaz de comprender la fuerza de
la impugnación.» (2) Estamos em presença de outro desconchavo. De
qualquer maneira entendi que sempre valeria a pena ordenar estas linhas para
esclarecimento de terceiros: o universo é imenso, e nele cabe muito mais do que
tudo quanto separa uma dialéctica, até
hoje infrutífera, do lugar em que se situam juízos tacanhos, se não forem
maldosos!
Joaquim
Maria Cymbron
____________________________________________________* Entre os preceitos legais aqui indicados, por lapso não foram referidos estes: 220.º, n.º 2; 222.º, n.º 2 (nalguns casos); e 361.º, n.º 1.
- Chronica Constitucional do Porto, n.º 1, 1832, pp.3 e s.
- El Criterio, cap. XXII, § IX.
JMC
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