A
contumácia é grande; o despudor continua; e a malvadez não mostra limites. Mas
a minha indignação é maior que toda esta ignomínia junta; ainda não quebrei; e,
com a ajuda de Deus, espero que o meu ânimo não há-de esmorecer.
Sem disciplina, a vida é impossível. Os movimentos
revolucionários estimam-na tanto que a exigem e a impõem nas suas hostes. Como
o oxigénio para o fogo, assim está a disciplina para todos os comportamentos
humanos, mesmo os mais sediciosos: onde ela falte, as chamas da subversão não
podem arder. Isto diz bem do alto valor da disciplina, que até os inimigos da
ordem a apetecem e põem em prática.
Quando
digo ordem, não me refiro àquelas manifestações de ordem, que se
substituem umas às outras, com uma facilidade quase igual ao programa de
qualquer feira e que não chega a criar raízes: tenho em vista a ordem recta e
justa, a ordem que dura e perdura, porque permanece no Ser. Só devia
aspirar à dignidade de ordem, aquela que assenta as suas bases na lei divina,
porque é a única cuja intrínseca bondade lhe confere vocação de perpetuidade.
A
mais falsa aparência de ordem, tão intensa que se lhe pode chamar inversão da
ordem, é aquela que se vê no domínio da tirania. Esta assume dois aspectos: um,
é o sistema que garante o bem privado do princeps, em detrimento do que
diz respeito a toda a comunidade; o outro está no exercício pervertido do poder
político através de grupos privilegiados, que, a coberto da escolha de
multidões anónimas, vão sacando todas as vantagens da res publica, com
exclusão dos demais. Não há mais nem menos violência em qualquer uma destas
formas de governo. E se a definição clássica tem o mau hábito de só chamar
tirania à primeira delas, nem por isso há menos opressão na segunda, para a
qual se convencionou reservar o nome de oligarquia. A terminologia, aqui,
acomoda-se à mera questão de singularidade ou pluralidade dos favorecidos com a
iniquidade que levam a cabo.
A
pior das tiranias, no entanto, é sempre a que resulta da anarquia. Esta
declara-se todas as vezes que as instituições públicas se mostram incapazes de
fazer observar as leis que elas próprias criam. Nem interessará, então, cuidar
do valor ético das mesmas; basta que se dê o vazio de poder. Para essa situação
caminhamos a passos acelerados. A partir desse momento, tudo pode acontecer:
entra-se em estado de revolta e não deve admirar que estale a rebelião,
movimento ditado por um instinto colectivo de sobrevivência.
E
é por isto mesmo que quem diz sociedade, diz ordem, mesmo que não seja uma
ordem justa. Pois sociedade sem ordem não se concebe, nem o nome de sociedade
se lhe pode dar: não passa de uma horda à solta.
Como
acima disse, vivemos um estado vizinho da anarquia. Os principais
agentes subversores da ordem, daquela que temos, em certos pontos
prolixa, contraditória e sobretudo privada do selo da integridade, mas apesar
de tudo ordem, porque mesmo combalida por aqueles males ainda é formada de
regras portadoras de valores positivos, os maiores culpados da anomia que
se aproxima, repito, encontram-se no meio de duas legiões, autênticos
demónios do mal, competindo entre si na tarefa de destruição. Refiro-me
a algumas figuras das magistraturas dos nossos Tribunais.
Alegam
que a responsabilidade da grave situação criada cabe ao legislador. Já não é
mau: ficamos assim a saber que as coisas não estão boas. Simplesmente, a defesa
é improcedente e envergonha quem a ela recorre:
Se
é certo que o legislador faz a lei, quem a aplica são os Tribunais. Se a lei
requer ser depurada, aqueles órgãos têm legitimidade bastante para proceder a
uma epiqueia da mesma. Se o não fazem, andam mal porque têm não só o poder,
como também o dever de agir por este modo.
Direcção-Geral
de Reinserção e Serviços Sociais Prisionais! Isto que é?
Que significado tem este título tão comprido? Fixemo-nos nas primeiras
palavras: Direcção-Geral de Reinserção. Reinserir como, quem e para
quê? É sensato promover a reinserção daquele que nunca deixou de estar
inserido? Impõe-se distinguir entre sistemas: quando alguém está integrado num
sistema de ordem, da autêntica ordem, é acaso lícito, sob a capa da reinserção,
desviá-lo para um sistema de moral abjecta e com leis de escassíssimo crédito?
No entanto, é para ali que os nossos magistrados empurram os condenados,
esquecendo que nem todos acharão vantajosa a troca com um sistema de traição,
de desonra e de dor, sistema que, pouco a pouco, destrói a consciência nacional
de um povo e, fibra a fibra, rasga a sua identidade histórica.
Querem que eu vá reinserir-me no tecido social. Porquê? Há por aí tanta
marginalidade, e não vejo com ela a mesma preocupação.
Ainda recentemente, a opinião pública estremeceu debaixo da impressão causada
pelas denúncias de plágio nuns exames efectuados no CEJ. E mais
atónita ficou, quando soube da solução dada ao caso. Não tem razão. Exigir
a punição dos que copiaram, é sintoma de um temperamento mórbido. Se os
magistrados, já com anos de serviço e em funções, até hoje passaram impunes
sempre que prevaricaram ou denegaram justiça, porque – assim se vem decidindo –
não foi conscientemente que agiram contra legem, como era possível
castigar aqueles que nem sequer tinham as suas carreiras iniciadas? Só uma
severidade doentia, repito, podia sustentar essa reacção contra aquelas
criaturas, pobres inocentes que estavam justamente terminando a fase do seu
aprendizado.
Nesta
ironia cabe toda a criminalidade que aflige Portugal? Não, evidentemente! Este
relato singular vale pelos protagonistas. E por isso, embora o mesmo não
contemple todos os delinquentes, não repugna afirmar que ali se concentra boa
parte deles. Na realidade, aguarda-se dos Tribunais a recta composição das
lides de quem vive em sociedade. Mas se a Justiça se define por uma «constans
et perpetua uoluntas ius suum cuique tribuendi»,1 e entre os
preceitos do Direito chama particularmente a atenção o que manda «alterum
non laedere»,2 como se há-de acreditar nalguns magistrados para
cumprimento de tão elevada missão? Causará espanto, porventura, o crescimento
da onda de crime e que alastre a mancha de malfeitores, quando no grémio donde
se conta que saia a repressão também lá vamos dar com eles?
Decididamente,
não encaixo com a reinserção num sistema de caos e provocada por um quadro de
magistrados, no qual se perfilam tipos muito complexos e de duvidoso equilíbrio
emocional. Enquanto for este o panorama, o meu dedo continuará a tocar na
ferida.
Não há prisão que me amedronte. Ela até poderá ser um refúgio
para quem, como eu, foi reduzido à miséria material pela acção infame de uns
contralitigantes que depressa acharam apoio em magistrados esquecidos dos seus
sagrados deveres: o meu sustento passa a correr por conta do Estado, o que
virá aliviar quem me tem valido nestes tempos de aflição.aflição.3 Por outro lado, constituirá
uma experiência humana muito interessante. Não sou
infelizmente o único injustiçado. Muitos lá estarão penando,
sem razão para isso. Com esses desgraçados estarei solidário,
e levo-lhes mensagem há muito guardada: «Olhai que
o inimigo não é o guarda prisional, que nos vigia enquanto
dura a reclusão; nem o é quer o agente da PSP,
o militar da GNR ou o inspector da PJ,
que nos capturam por suspeitos. Nenhum destes elementos é o
inimigo, porque o inimigo está em certos magistrados que
envergam a veste talar como o actor dramático, quando
sobe ao palco, se cobre da indumentária adequada ao papel que
vai desempenhar em cena.»
Isto
é o que lhes direi. E se um dia eu desistir de acusar os
culpados desta vergonha, então aí, sim,
estarei precisado de proceder a uma revisão do meu comportamento, a ver
se me corrijo!
Joaquim
Maria Cymbron
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- D. I, 1, 10.
- Ib.
- Refiro-me
aos que me ajudaram com generosidade e nunca me negaram o apoio
da sua amizade, quando nada me deviam nem devem. A minha
gratidão não abrange certa pessoa, que é uma das principais
culpadas do estado a que fui reduzido, e que persiste em não sanar o mal
que também me causou. Tenho vergonha em nomeá-la e já lhe disse que
recebo, a título de indemnização antecipada, o dinheiro que me envia. De
resto, ela calcula (e bem) que consequências pode ter o resultado de
eu me ver sem meios para sobreviver.
JMC