Infelizmente, o assunto de que aqui se trata, não atinge Espanha com exclusão de outros povos. O mundo sofre o mal terrível do relativismo.
Em Portugal, já os nossos praxistas distinguiam entre erro de ofício e erro de malícia: dos primeiros, recorre-se; contra os segundos, tem lugar a queixa.
Ora bem: o atraso numa decisão judicial pode constituir um crime p.p. na nossa lei penal. Chama-se-lhe crime de denegação de justiça e prevaricação (CP art.369.º). No entanto, nos anais judiciários portugueses (e fora deles), não há memória de um magistrado que tivesse sofrido a pena aplicável a esse crime. O que, convenhamos, é um resultado demasiado generoso com respeito à integridade daqueles, para que se tome como traduzindo fielmente a verdade dos factos. É moralmente impossível que, ao longo de tantos anos, numa corporação tão vasta, nem um único membro tenha prevaricado no exercício das suas funções.
Quando arguidos de denegação de justiça e prevaricação, os magistrados portugueses saem limpos de qualquer culpa, porque se considera que não actuaram conscientemente, mais isto e mais aquilo. Ou seja: as decisões dos tribunais superiores não chegam ao cúmulo de proclamar a infalibilidade de tais magistrados, mas dão-nos a ideia de que eles são pouco menos que impecáveis.
Por aqui, poderia ser-se levado a crer que estou de acordo com a condenação do juiz Ferrín Calamita. É perfeitamente o contrário.
Quando a matéria de facto se encontra amplamente provada, o tribunal que julga a questão, não tem mais remédio do que socorrer-se da teoria do dolo. E onde quer livrar o arguido, vê-o como quem olha um anjo de candura e inocência; em contrapartida, se estiver animado do propósito de castigá-lo, logo o transforma em demónio.
Parece-me que foi isso que aconteceu ao impávido juiz de Murcia. Nada sei da lei que em Espanha regula todos os aspectos da causa em que foi condenado aquele magistrado, nem tão-pouco conheço a jurisprudência que, à volta dela, se formou. Mas intriga-me que o espaço de seis meses, à espera de um relatório pericial, seja motivo de incriminação do juiz que o ordena, deixando imune a pessoa encarregada de o elaborar. E isto no caso de ter havido atraso.
Por fim, com todas as limitações antes assinaladas, e sem querer, de modo algum, afrontar o poder judicial de uma nação soberana, a cuja grei não pertenço, mesmo assim não deixarei de acrescentar que uma coisa há, para mim, muito clara --- a profissão de fé, que este juiz fez no meio de um tribunal, o qual, mais que julgá-lo, me deu a impressão de estar a executá-lo, esse testemunho é um grito de alma de quem não teme confessar Deus diante dos homens.
Na barra daquele tribunal espanhol, enfrentaram-se duas filosofias de vida: do lado do arguido sentia-se a filosofia do Ser; do outro, desbordou uma filosofia de negação. Nestes tempos, de tanta escuridão e de tanto silêncio criminoso, a posição assumida pelo juiz condenado brilha como um raio de luz celestial e soa como um hino de melodia inefável.
Joaquim Maria Cymbron