NOTA PRÉVIA: Este texto foi revogado pela versão também publicada neste blogue --- http://ceifamagistrados.blogspot.pt/2017/03/esta-peca-revoga-uma-anterior-publicada_56.html
Recebi um comentário (sumido não sei como) ao
que escrevi em GRANDE ESTIRADA, no qual o seu autor lamentava que eu não
tivesse desenvolvido os argumentos de fundo. Tem razão: quem abre um blogue
deve fazê-lo para expor, perante todos, os seus pontos de vista, e não para
esgrimir individualmente com este ou aquele, ignorando os leitores
eventualmente interessados na matéria abordada. Vou, pois, seguir o caminho
indicado pela voz de quem se mostrou atento à minha falta.
Entro, pois, na matéria:
Assim, começarei por sublinhar que, apesar de
ser esta uma questão debatida há longo tempo, todas as remissões legais são
feitas para diplomas em vigor, porque os preceitos, que vou invocar, não
sofreram qualquer modificação no seu conteúdo.
A norma
do CPP, à qual se agarram, com grande afinco, os estrénuos paladinos do
instituto da defesa oficiosa é certamente a do art. 64.º. Sucede que este
comando constitui uma providência muito digna, que procura actuar em defesa dos
menos prevenidos, para que estes não defrontem inermes uma acusação em
processo-crime, mas que devia ser olhada como genuína norma supletiva. Deste
modo, aquela obrigatoriedade só deve entender-se como vinculativa para as
autoridades judiciárias. E a nomeação daqui resultante não tem de ser imposta a
quem a rejeite, sob pena de se transformar em agressão o que se anuncia como medida
defensiva.
O estado emocional do arguido, um dos
argumentos mais gastos pelos que se opõem ao direito daquele à sua autodefesa,
é ele, sim, um argumento de valor muito emotivo. Com efeito, o arguido, apesar
de parte no processo, não será ipso facto tragado pelas ondas da
paixão, a ponto de soçobrar na defesa ou de faltar ao respeito devido ao
tribunal. No entanto, se se visse apertado, assim como tem o direito de mudar
de patrono, também poderia constituir advogado em qualquer altura do processo.
Mas ainda que a sua autodefesa venha a revelar-se desastrosa, pelo factor
emocional ou por outro motivo, sempre terá sido uma escolha sua, que não devia
ser contrariada. De outro modo e a continuar por este andar, bem pode acontecer
que não tarde em chegar a proibição para o advogado que
queira patrocinar um filho seu, em processo-crime!
Desdramatizemos, no entanto. Se, para um
arguido, o facto de estar sob o peso de uma acusação-crime fosse,
inelutavelmente, causa de desorientação emocional, nesse caso, tão-pouco lhe
devia ser consentido que apresentasse «exposições, memoriais e requerimentos
(...) embora não assinados pelo defensor (...)» (CPP art. 98.º, n.º 1), nem que
usasse da palavra, conforme pode fazer nos termos dos artigos 141.º, n.º 5
(onde em especial o segmento «causas que possam excluir a ilicitude e a culpa»
encerra matéria que é eminentemente de direito e da mais delicada, pelo que não
está ao alcance de qualquer um, a não ser por um golpe de felicidade); 144.º,
n.º1; 220.º, n.º 2; 222.º, n.º 2 (nalguns casos); 343.º, n.º 1 e n.º 5; 344.º, n.º 1; 345.º, n.º 1; e 361.º
do mesmo diploma. Quando o arguido intervém no processo, ao abrigo das citadas
disposições legais, a sua categoria processual não se altera, quer esteja
desacompanhado, quer actue assistido por advogado, e embora a lei só fale em
defesa na última dessas actuações, ressalta nitidamente que as outras não o são
menos. O arguido pode ainda deitar mão de uma faculdade que, pelo
menos, com igual intensidade, não se coaduna bem com a tese da perturbação por estar
a responder criminalmente --- reporto-me ao poder que lhe assiste de «retirar
eficácia ao acto realizado em seu nome pelo defensor (...)» (ib. art.
63.º, n.º 2). Neste último caso, somos colocados perante uma evidente
demonstração da legitimatio ad processum que assiste ao
arguido e que, a alguns, repugna admitir não se percebe porquê. Se bem
repararmos, ao «retirar eficácia ao acto realizado em seu nome pelo defensor
(...)», o arguido exibe uma força muito maior do que nos exemplos antes
apontados: naqueles momentos processuais, o arguido pode limitar-se a falar pro
defensore e, até, praeter defensorem; na segunda hipótese,
vai necessariamente contra defensorem. Aqui, à semelhança do
cível (CPC art. 38.º), temos a prova inilidível de como é a parte o único e
verdadeiro dono dos seus interesses no processo. E permitir isto a quem
alegadamente pode estar perturbado, equivale a autorizar o seu eventual
suicídio na lide em curso!
Arguido assistido por defensor oficioso é uma
noção ideal e como acontece com o que tem natureza ideal, os seus contornos são
pouco definidos. Levanta-se esta interrogação: custará muito aceitar que um
arguido, presente em processo penal sem a companhia de advogado, possa estar
muito mais apoiado (e, portanto, assistido) do que outro, cujo defensor esteja
fisicamente próximo? Nem se esqueça que a obrigatoriedade de assistência do
defensor deve ser entendida em termos muito hábeis. De contrário, havíamos de
considerar que falta o defensor no primeiro interrogatório judicial de arguido
detido, onde aquele não pode ir muito além do que entrar mudo e sair calado
(CPP art. 141.º, n.º 6).
De resto, porquê esta pertinácia de impor um
defensor em nome de um direito, quando se tem como certo na doutrina que la
cour sait le droit e que, por isso, se limita a
pedir da mihi factum, dabo tibi ius? A menos que se
tenha como via óptima a que se segue escondendo do tribunal os factos
realmente vividos ou alterando-os. É uma táctica de defesa, não tem dúvida,
e sabe-se que o arguido a ela recorre, até por instinto. É humano e
não deve escandalizar ninguém.
A questão centra-se então no processo de
induzir o tribunal em erro de apreciação : o arguido pode ser
bisonho; um profissional do foro já o fará com subida arte. No caso de culpa
por parte do arguido, isto não é aceitável sob o ponto de vista moral.
Pode acontecer, no entanto, que o arguido esteja inocente, mas exista
séria dificuldade em fugir à acusação, a menos que ele se sirva de
algum estratagema, fechando-se no silêncio ou calando-se agora para
falar adiante e da forma mais conveniente. Este comportamento, se não vier
prejudicar terceiros, é eticamente desculpável, mas ainda aqui a lição que
continua a impor-se, é a de que a escolha de ter ou não defensor deve caber
sempre ao arguido.
Com toda a consideração, que a classe de
advogados nos deve merecer, não se pode calar o que de todos é sabido --- o
defensor oficioso, muitas vezes, não vai além de oferecer o mérito dos autos,
após o que pede justiça. Não é esta, certamente, a defesa que se pretende
pôr ao alcance do arguido. E, se se entender que ela basta, temos de
convir que é difícil encontrar alguém que não saiba dizer outro tanto. Logo,
por aí, qualquer arguido está apto a defender-se a si mesmo.
Aprofundemos mais a questão:
Há direitos e há obrigações: as obrigações
são-nos impostas; os direitos, que não forem indisponíveis (v. g., os poderes funcionais),
são exercidos, ou não, conforme a vontade do respectivo titular. E este é o
núcleo do problema. Alega-se a favor da defesa oficiosa que ela constitui uma
medida inserida num conjunto que visa a protecção dos direitos, liberdades e
garantias fundamentais dos cidadãos, cuja observância estes têm o direito de
exigir. O direito, note-se bem, mas não o dever! Ou seja: é patente o
conteúdo daquilo que forma a clássica noção de um direito subjectivo. Pelo que,
impor a defesa oficiosa é a negação daquilo que se afirma ser o seu fundamento
teleológico. Por aqui, qualquer dia teremos que a recusa de qualquer
pessoa em receber o auxílio necessário, que lhe é prestado nos termos da
lei (CP art. 32.º,in fine; ib. art. 200.º), é desprovida
de valor e que, portanto, há-de suportar sempre a ajuda que se lhe oferece. Nem
vale objectar com a divisão que se vai desenhando com base na distinção
entre direitos disponíveis e direitos indisponíveis, sustentando que, quanto a
estes, para nada conta a oposição de quem está em perigo, porque no mínimo é
duvidoso que o direito do arguido a uma defesa oficiosa seja um direito indisponível.
E
se levarmos em conta que uma acusação em processo-crime não é propriamente uma
agressão ilícita, então a proibição, que aqui se combate, ainda custa mais a
entender.Em certa medida, a questão reduz-se a isto: o
arguido tem direito à defesa através de um profissional do foro (CPP art. 61.º, n.º 1, al. e) e al. f).
Impedi-lo de renunciar a esse direito, é o mesmo que equiparar tal direito
a um poder funcional. Que função se impõe aqui ao arguido?
Na verdade, quando o arguido é maior e responsável
não faz sentido obrigá-lo a aceitar um defensor que ele não escolheu, nem
pretende ter. O arguido, assim, ficaria sujeito a uma protecção idêntica à que
é dispensada por um tutor ou, no mínimo, por um curador. Quer dizer: o arguido,
defendido por este modo, seria tratado como sofrendo de uma capitis deminutio.
O que, desde logo, deveria levantar o problema da sua imputabilidade e,
consequentemente, em que termos deveria responder perante um tribunal.
Entre os opositores ao direito de autodefesa
do arguido, há uma espécie curiosa. É formada por aqueles que não o repelem
liminarmente, alguém que o admite embora com restrições. Na verdade, o acórdão
prolatado pelo Comité dos Direitos do Homem (ONU), no caso Correia de Matos,
diz inequivocamente que «le droit d'assurer sa propre défense sans avocat
n'est cependant pas absolu» (7. 4). Em seguida, acrescenta que «l'intêrêt
de la justice peut demander l'imposition d'un avocat commis d'office, contre le
gré de l'accusé, en particulier si l'accusé fait de manière
persistante gravement obstruction au bon déroulement du procès, si l'accusé
doit répondre à une accusation grave mais est manifestement incapable d'agir
dans son propre intérêt, ou, s'il s'agit, (...), de protéger des
témoins vulnérables contre les nouveaux traumatismes que l'accusé pourrait leur
causer en les interrogeant lui-même.» (Ib.).
Este segmento do acórdão deixa-me estupefacto
e surpreende-me que haja quem o subscreva.
Com efeito:
Se o arguido levantar sistematicamente escolhos
ao normal andamento dos autos, o tribunal dispõe de meios para obstar a esse
mal, na exacta medida em que pode reagir contra a chicana levada a cabo por um
advogado. Significa isto que não é por se ter patrono que haverá menos enredo.
Esse risco será provavelmente muito maior. De resto, cai-se aqui numa flagrante
contradição: ao mesmo tempo que se afirma a inaptidão do arguido para se
defender a si mesmo --- e o acórdão, como já vimos, também o sustenta em
situações específicas --- há o receio de que o arguido possa criar obstáculos
no desenrolar do processo, esquecendo que a trapaça jurídica requer talento e
ciência. Aludo à chicana bem feita, é claro, já que a outra não assusta
ninguém. Prejudica apenas aquele que a usa, porque rapidamente é anulada.
Em segundo lugar, o acórdão desconfia da
capacidade do arguido nas causas de maior monta. Isto é tão abstruso que me
vejo obrigado a repetir a transcrição da doutrina que o acórdão fixou para este
ponto: «(...) si l'accusé doit répondre à une accusation grave mais est
manifestement incapable d'agir dans son propre intérêt (...)».
Esta doutrina que parece não ter outro
fundamento que não seja a distinção entre causas fáceis e causas dificeis,
assentando a sua dicotomia na moldura penal de umas e de outras, é igualmente
insustentável.
Na verdade, ou o arguido é capaz para
decidir que há-de defender a si próprio, ou está desprovido dessa faculdade,
pelo que limitar esse direito, em função do grau de uma penalização mais ou
menos pesada da causa que enfrenta, continua a ser uma medida de protecção
inaceitável. O receio de uma inadequada preparação do arguido é o argumento dos
adversários radicais do direito de autodefesa. E por uma questão de coerência
lógica, também se devia estender aos defensores oficiosos, os quais muitas
vezes não sabem o suficiente de direito penal, nem sequer para os casos mais
simples, porque enveredaram, há mais ou menos tempo, por outros ramos do
direito.
Quanto ao último motivo, continua a ser frágil
a posição tomada pelo acórdão. O PIDCP estipula que «qualquer pessoa acusada de
uma infracção penal terá direito (...) a interrogar ou fazer interrogar (1) as
testemunhas de acusação (...)» (art. 14.º, n.º 3, al. e). Se o tribunal notar
uma especial vulnerabilidade dos inquiridos, chamará a si o interrogatório,
tudo dentro de um procedimento que não é raro adoptar com os próprios
advogados. O contratempo apontado no acórdão tem, pois, remédio pronto.
A terminar, e porque o mérito da
prática noutro campo, também ela contrária ao que aqui é defendido e a seguir
se dá conta, porque esse mérito, lembro, não vale mais, deixa-se uma curta
referência a um grupo formado por aquelas vozes que reconhecem ao arguido o
direito de falar sobre factos, mas que se opõem a que alegue de direito. Que distinção
é esta? Porventura conhecem os tribunais de alguma questão de facto que
ande separada do direito? Ou o inverso? Tentam cavar assim um divórcio
impossível de consagrar, porque questão de facto e questão de direito, com
dignidade suficiente para serem apreciadas em juízo, conjugam-se na perfeição.
Acaso curam os tribunais de factos irrelevantes no mundo do direito? Ou
debruçam-se sobre problemas de direito que, pelo menos, não tenham subjacente
um facto carecido de tutela jurídica?
É certo que os tribunais se mostram renitentes
em aceitar o regime consagrado no PIDCP art. 14.º, n.º 3, al. d) e al. e) e na
CEDH art. 6.º, n.º 3, al. c) e d), matéria que hoje, inilidivelmente, faz parte
do direito interno português, ex vi o disposto na CRP art. 8.º, n.º 2, e
assim se comportam sem serem capazes de se lhe opor frontalmente, desenvolvendo
os fundamentos pelos quais não aceitam o que ali foi tratado. Se o estipulado
nestes documentos, a respeito do aqui se versa, fora justa causa de alguma
suspeita ou repugnância, certamente que o legislador não teria aprovado
ambos os diplomas sem alinhar as suas reservas.
Apetece perguntar: Que motivos inconfessáveis
se querem esconder? Com esta prática, tem-se a impressão de que o
instituto da defesa oficiosa em lugar de se destinar à protecção do arguido,
acaba por funcionar a favor de uma classe --- a dos
advogados. Quer dizer: não é o arguido que precisa de advogado, mas este
que colhe proveito de ter um arguido para defender. É razoável esta suposição?
--- Ela é bastante temerária. Qual então o mistério que cobre o caso?
CONCLUINDO:
1. É ponto líquido que o regime consagrado no PIDCP art. 14.º, n.º 3, al. d) e al. e) e na CEDH art. 6.°, n.° 3, al. c) e al. d), integra matéria que hoje, inilidivelmente, faz parte do direito interno português, ex vi o disposto na CRP art. 8.°, n.º 2.
CONCLUINDO:
1. É ponto líquido que o regime consagrado no PIDCP art. 14.º, n.º 3, al. d) e al. e) e na CEDH art. 6.°, n.° 3, al. c) e al. d), integra matéria que hoje, inilidivelmente, faz parte do direito interno português, ex vi o disposto na CRP art. 8.°, n.º 2.
2. Se o estipulado nestes documentos, a respeito do aqui se versa, fora justa causa de alguma repugnância, certamente o legislador não teria aprovado ambos os diplomas sem apor as suas reservas.
3. Por isso, tanto mais dificil é de entender que se ratifique ou aprove tratados que continuam sem receber o devido acolhimento da nossa jurisprudência, fazendo tábua rasa do que foi acordado e até do que, de novo se repete, estatui a lei constitucional (CRP art. 8.°, n.º 2).
4. Não se vislumbra, pois, qualquer razão pela qual os nossos tribunais persistem em ignorar o que foi fixado em tratados livremente celebrados pelo Estado e por ele regularmente sancionados.
5. O que se dispõe nesses tratados devia vigorar na ordem jurídica interna por força do comando ínsito na CRP art. 8.°, n.º 2, como aqui já se alegou mais que uma vez.
6. De resto, a este respeito convém não perder de vista o disposto na Lei n.º 43/86, de 26 de Setembro, art. 2.°, n.º 1.
7. O seu cumprimento cabal impõe-se.
8. A pertinácia do legislador, não procedendo em conformidade, resulta na violação da Constituição (art. 32.°, n.º 1).
9. Nem se objecte com o que manda a Constituição (ib., n.º 3, in fine) quer porque, conforme o já alegado, esse comando só deve obrigar as autoridades judiciárias, quer por aquilo que, infra, se aduzirá (itens 11 e 12 destas conclusões).
10. Para dar corpo ao direito do arguido se defender a si mesmo, alegando de facto e de direito como cumpre a qualquer defesa forense, e assim se corrigir uma defeituosa hermenêutica, pondo-se-lhe um termo que já tarda, é imprescindível que se reforme o que vem estabelecido no CPP art. 64.°
11. Desde que informado do direito de ser assistido por um defensor oficioso, ao arguido deve reconhecer-se, de modo expresso e inequívoco, a necessária legitimidade para declarar que é de sua livre vontade defender-se a si próprio, em qualquer das fases processuais.
12. Se, posteriormente, o arguido se ausentar ou for ferido de alguma incapacidade que o impeça de prosseguir na autodefesa, aplicar-se-á então o disposto no CPP art. 64.°, n.º 1.
13. Como remate destas conclusões, nova chamada de atenção para os preceitos que foram bem apontados e que, ao longo do CPP, conferem ao arguido o poder de realizar actos de pura defesa, sem que em parte alguma do mesmo diploma se proíba, in radice, tal comportamento.
Joaquim Maria Cymbron
Obs.: Este texto foi publicado a 14SET07, no meu blogue MOVIMENTO
LEGITIMISTA PORTUGUÊS. A razão que determinou a sua inserção, agora e aqui,
é a mesma que presidiu à transferência do texto anterior GRANDE ESTIRADA, e que ali foi apresentada, numa
observação final como esta. O título da versão originária era diferente e o seu
conteúdo também. Assim se mantiveram largo tempo, até que razões
ponderosas impuseram que fosse alterado.
JMC
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O negrito é meu.
JMC