V. Ex.ª está satifeita? Eu, não!
E nem se prende com a condenação. Condenações, há muito que fazem parte do meu
quotidiano.
O que me contraria é a dúvida de não
saber se a pretensa ofensa, de que V. Ex.ª se queixou, tem a ver com umas
toscas meias, em vez de um bonito conjunto de meias de seda e cinto de ligas. Isso era de realização impossível. São
três as razões que o impediram: a primeira, e que é a mais importante, por
decoro moral; vem depois o motivo económico, o qual se reconduz a que um presente daquela categoria há-de ser caro e, na
algibeira, eu não tenho sequer um cêntimo para luxos; por fim, a noção
estética, de que não me acho desprovido, a qual me diz que essa oferta de nada
serviria a V. Ex.ª
Não pude avistar V. Ex.ª, ainda
que fosse num relance virtual, na memorável jornada recentemente vivida bem perto
do sítio, onde V. Ex.ª derrama abundantemente os tesouros da sua imensa ciência
jurídica. Creia, Meritíssima Juíza, que eu teria o mais subido gosto em tal
momento, e essa hora seria, para mim, motivo de um grande orgulho. De facto,
nem todos os dias pode um celerado da minha dimensão gozar tão insigne honra.
Assim perdi uma inquirição que, a avaliar pelo percurso seguido desde que os
fados ditaram que se cruzassem os nossos caminhos, se terá certamente pautado
pelo primor jurídico que distingue V. Ex.ª e com o qual, há tanto tempo, me venho
deliciando.
Quando V. Ex.ª depôs, ainda eu
estaria pelo aeroporto, acabado de desembarcar.
Negar-me o já confessado prazer de a ver, foi uma peça que me pregaram. Não
estarei, contudo, a ser demasiado severo? Se calhar não foi por pirraça que não se
esperou a minha chegada a tribunal, recebendo eu apenas a paga que o meu atraso
mereceu. Está visto que os Açores, fustigados por aquele bravio temporal que os assolou na véspera do julgamento, têm sobejas razões de queixa contra mim, porque manifestamente fui eu quem desencadeou a fúria dos elementos.
Descontada, porém, a volúpia de
que fui privado quando me tornaram impossível vislumbrar a gentilíssima figura
de V. Ex.ª, seria pouca a utilidade que eu tiraria por estar presente. Com
efeito, a acção que me foi instaurada pelo envio das meias (crime abominável, não
tem que ver), essa acção, repito, esteve toda ela dominada pelo propósito bem definido de realizar a
mais límpida e densa justiça. Isto basta. Para quê, pois, atender a formalismos
processuais, autênticas minúcias como seja exemplo o de tomar declarações à
ofendida sem a presença de um arguido ausente porque quis?
Deixemo-nos de futildades! Por
isso é que a Justiça emperra e não anda. E vêm uns tantos, contando-me eu entre
eles, deitar culpas sobre parte da Magistratura. Que tamanha crueldade! Sou
obrigado a passar em revista toda a minha posição nesta matéria e, parafraseando Fradique Mendes numa das suas cartas (1), exclamo ao mesmo tempo que bato no peito: Esta
mediana gente, no meio da qual tenho andado e partilhado tão injustos
preconceitos, nunca compreenderá a imensa virtude de todos os nossos
Magistrados!
Sou ainda servido de informar que
um M.mo Colega de V. Ex.ª, na comarca que foi palco da farsa que trato, me fez
saber que não andam os tribunais a reboque de mim, mas que deve ser o
contrário. Veja bem: eu, que imaginava ser obrigação de todos irmos a reboque
da lei, ao ouvir tal sentença, sofri um rude golpe. Cheio de zelo, quis ainda o
Senhor Juiz continuar a catequizar-me, dizendo que ali eu nada mandava. Fiquei muito triste, conforme é de calcular. No entanto, por não comungar da religião de que ele é apóstolo, respondi-lhe que tanto
como ficara ciente de que não viriam os tribunais ter comigo, assim estivesse
ele certo de que eu não me deixaria arrastar por nenhum tribunal e que, se
continuasse a pregar, valeria o mesmo do que falar para uma parede. Mas é óbvio que agi assim só para o arreliar. Entretanto
e apesar de eu estar acatando a ordem de abandonar a sala, nela entraram dois agentes
da PSP, o que provocou feíssima reacção da minha parte. Imagine só --- lancei em rosto ao M.mo Colega de V. Ex. que, nestas lides, só me causará
pejo ser visto no meio de alguns Magistrados e nunca o de estar custodiado pela polícia!
Deste incidente, não dá conta o
suporte digital do acto judicial então realizado. Desapareceu ou, muito
oportunamente, não chegou a existir. De resto, a sua audição é muito imperfeita.
Daquele que devia trazer-nos o registo do julgamento do crime nefando, nem
falar: ainda se ouve pior, ficando-se sem saber se também há cortes. Bastante
conveniente, principalmente se atendermos à bulha havida para me retirarem da
sala de audiência e ao momento em que assinalo que o escrivão-auxiliar me
fracturou o polegar.
M.ma Juíza! Que V. Ex.ª não viva
feliz, lamento. Que se sinta em conflito interior, compreendo. Que sofra
terrivelmente ao ver a sua obra como Magistrada, também não causará surpresa a ninguém. Mas,
ao menos, procure ser prática: a sanha que a inflama contra mim, a nada conduz
se exceptuarmos esta infindável cadeia que se desenha há já vários anos.
É V. Ex.ª vingativa? --- Se não
é, representa muito bem! Transpõe para os juízos que profere, os problemas
pessoais que a dilaceram? --- Há todos os sinais disso! Tem decidido,
comigo, contra Direito? --- Aqui, o sim não pode ser mais categórico! Nesta
freima de reagir, V. Ex.ª só vem provando uma coisa: sou um elemento incómodo;
molesto-a; e consigo ofendê-la. Ora isso enche-me de gáudio, porque mostra bem
a distância que nos separa: na verdade, nunca eu me sentiria injuriado por V.
Ex.ª uma vez que não ofende quem quer, mas só quem pode!
Nesta minha curta passagem pela
ilha, uma ilha onde V. Ex.ª desgraçadamente não cumpre as suas funções como devia
fazê-lo, não estranharia se porventura me participassem que o meu comportamento
havia chocado as boas consciências burguesas da terra. Isto de chamar-lhes boas
consciências é um eufemismo reservado a uma casta de gente que não suporta o
mais pequeno beliscão no sossego do seu ramerrão diário. Afinal, que fiz eu de
tão execrável? --- Pois bem! Levado pela curiosidade, quis informar-me da vida
cultural que anima a ilha. Corria o Carnaval e, por isso, perguntei se uma
afamada e antiga casa de espectáculos, que aí se ergue, apresentaria algum
número de circo. Disseram-me que isso agora estava a cargo de alguns
Magistrados de um Tribunal. E logo acrescentaram que esses acrobatas são
exímios nos funambulismos ali verificados. Não fiz mais do que adaptar-me ao
estilo.
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Ao Sr. E.
Mollinet (Eça de Queiroz --- A Correspondência de Fradique Mendes).
JMC