Uma magistrada do MP, que prestava serviço num dos nossos tribunais superiores --- e julgo que ainda lá se mantém --- declarou-me um belo dia que, contrariamente ao ensinado pelos autores, o Direito não era uma ciência exacta.
É certo que o Direito não possui o grau de evidência que caracteriza as ciências físicas ou da natureza, e muitíssimo menos aquele que é próprio das ciências matemáticas. Mas daí a dizer que não é uma ciência exacta vai uma grande distância, que não se deve transpor. O Direito, como todas as outras ciências, é uma ciência exacta, sob pena de não ser ciência.
Resulta muito cómoda a afirmação de não ser o Direito uma ciência exacta. Permite a alguns órgãos judiciários as maiores arbitrariedades. Esta pretensa justificação é grave porque a maioria dos cidadãos não está preparada para ver a sua falsidade.
«De rabinho de bebé, pata de cavalo e cabeça de juiz, pode sair o pior quando menos se espera», é ditado muito antigo e hoje, a meu ver, mais ajustado que nunca à realidade dos nossos tribunais. Ao falar com médicos sobre este assunto, costumo confessar-lhes que a condição deles é incomparavelmente mais gratificante que a daqueles que estão ligados ao foro, ou por lá têm de passar a dirimir questões. Na verdade, se o médico faz o diagnóstico adequado ao caso clínico e aplica a terapêutica correcta, a natureza encarrega-se do resto. Num processo judicial, não sucede assim --- a parte pode ter carradas de razão; estar o seu direito superiormente apresentado; e a prova amplamente feita, que nem por isso está assegurado o êxito: a decisão do pleito depende sempre de uma vontade humana. E, como actos humanos que são, também as sentenças estão sujeitas a um enorme indeterminismo.
Numa equação matemática, postas duas grandezas ligadas por um dos sinais admitidos naquele ramo do saber, o resultado não pode ser senão o imposto pelas leis daquela ciência. O mesmo devia ocorrer numa operação jurídica: apurados os factos e aplicada a norma que regula aquela situação, o desfecho deveria ser um só. Infelizmente, isto é mero ideal.
Imaginemos, em termos matemáticos, que o problema jurídico é este: 2+2 seria igual a 4. A primeira parcela constitui a matéria de facto carreada para os autos e aí provada; a segunda traduz o regime legal aplicável; finalmente, chega-se à solução que há-de ser o corolário lógico destas premissas. Mas àqueles que sufragam a tese de que o Direito não é uma ciência exacta, basta-lhes viciar uma das parcelas e logo encontram diferente resultado.
O poder dos juízes é latíssimo nas decisões que proferem. E, quanto a mim, é deles a máxima responsabilidade no mau funcionamento da Justiça. Desculpam-se, a miúdo, com o argumento de que se limitam a aplicar a lei, à qual devem obediência, pelo que a desordem existente há-de imputar-se ao legislador.
Isto só em parte é válido. Está correcto que não lhes pertence a autoria da lei: apenas a sua aplicação. Mas antes disso têm de a interpretar, e essa actividade é exclusivamente deles.
Muitas das nossas leis são, de facto, um atentado à lógica e à moral. Porém, ainda um número considerável delas guarda a bondade suficiente para disciplinar sadiamente a vida da comunidade nacional. Ponto é que fossem aplicadas rectamente. E isso é o que tem faltado.
As inegáveis deficiências legislativas não chegam para explicar todas as aberrações que saem dos tribunais. Muitos desses aleijões derivam, em grande parte, da função jurisdicional. Isto é notório, e o sentimento de descrédito pelo sacerdócio da Justiça está generalizado, o que se torna deveras inquietante.
Os juízes, ciosos de uma independência, de que tanto se ufanam, parece que dão um fortíssimo sinal de imaturidade ao recusarem assumir a causa do mal que já ninguém ignora, porque se tornou impossível escondê-lo.
A sociedade, toda ela, está doente. E as enfermidades não se tratam sem reconhecer os males que nos afectam.
O poder judicial sempre foi um dos pilares de qualquer povo que se pretende civilizado. É, digamo-lo assim, a jóia da soberania. Não tem de estranhar se lhe exigimos que cure do seu brilho!
Joaquim Maria Cymbron