Toreador

Não é difícil perceber a razão pela qual se insere, aqui, uma das mais famosas árias do panorama operático --- https://www.youtube.com/watch?v=fOxDzDyLEMQ

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

MENORIDADE JUDICIAL

 


Uma magistrada do MP, que prestava serviço num dos nossos tribunais superiores --- e julgo que ainda lá se mantém --- declarou-me um belo dia que, contrariamente ao ensinado pelos autores, o Direito não era uma ciência exacta.
 
É certo que o Direito não possui o grau de evidência que caracteriza as ciências físicas ou da natureza, e muitíssimo menos aquele que é próprio das ciências matemáticas. Mas daí a dizer que não é uma ciência exacta vai uma grande distância, que não se deve transpor. O Direito, como todas as outras ciências, é uma ciência exacta, sob pena de não ser ciência.

Resulta muito cómoda a afirmação de não ser o Direito uma ciência exacta. Permite a alguns órgãos judiciários as maiores arbitrariedades. Esta pretensa justificação é grave porque a maioria dos cidadãos não está preparada para ver a sua falsidade.

«De rabinho de bebé, pata de cavalo e cabeça de juiz, pode sair o pior quando menos se espera», é ditado muito antigo e hoje, a meu ver, mais ajustado que nunca à realidade dos nossos tribunais. Ao falar com médicos sobre este assunto, costumo confessar-lhes que a condição deles é incomparavelmente mais gratificante que a daqueles que estão ligados ao foro, ou por lá têm de passar a dirimir questões. Na verdade, se o médico faz o diagnóstico adequado ao caso clínico e aplica a terapêutica correcta, a natureza encarrega-se do resto. Num processo judicial, não sucede assim --- a parte pode ter carradas de razão; estar o seu direito superiormente apresentado; e a prova amplamente feita, que nem por isso está assegurado o êxito: a decisão do pleito depende sempre de uma vontade humana. E, como actos humanos que são, também as sentenças estão sujeitas a um enorme indeterminismo.

Numa equação matemática, postas duas grandezas ligadas por um dos sinais admitidos naquele ramo do saber, o resultado não pode ser senão o imposto pelas leis daquela ciência. O mesmo devia ocorrer numa operação jurídica: apurados os factos e aplicada a norma que regula aquela situação, o desfecho deveria ser um só. Infelizmente, isto é mero ideal.

Imaginemos, em termos matemáticos, que o problema jurídico é este: 2+2 seria igual a 4. A primeira parcela constitui a matéria de facto carreada para os autos e aí provada; a segunda traduz o regime legal aplicável; finalmente, chega-se à solução que há-de ser o corolário lógico destas premissas. Mas àqueles que sufragam a tese de que o Direito não é uma ciência exacta, basta-lhes viciar uma das parcelas e logo encontram diferente resultado.

O poder dos juízes é latíssimo nas decisões que proferem. E, quanto a mim, é deles a máxima responsabilidade no mau funcionamento da Justiça. Desculpam-se, a miúdo, com o argumento de que se limitam a aplicar a lei, à qual devem obediência, pelo que a desordem existente há-de imputar-se ao legislador.

Isto só em parte é válido. Está correcto que não lhes pertence a autoria da lei: apenas a sua aplicação. Mas antes disso têm de a interpretar, e essa actividade é exclusivamente deles.

Muitas das nossas leis são, de facto, um atentado à lógica e à moral. Porém, ainda um número considerável delas guarda a bondade suficiente para disciplinar sadiamente a vida da comunidade nacional. Ponto é que fossem aplicadas rectamente. E isso é o que tem faltado.

As inegáveis deficiências legislativas não chegam para explicar todas as aberrações que saem dos tribunais. Muitos desses aleijões derivam, em grande parte, da função jurisdicional. Isto é notório, e o sentimento de descrédito pelo sacerdócio da Justiça está generalizado, o que se torna deveras inquietante.

Os juízes, ciosos de uma independência, de que tanto se ufanam, parece que dão um fortíssimo sinal de imaturidade ao recusarem assumir a causa do mal que já ninguém ignora, porque se tornou impossível escondê-lo.

A sociedade, toda ela, está doente. E as enfermidades não se tratam sem reconhecer os males que nos afectam.

O poder judicial sempre foi um dos pilares de qualquer povo que se pretende civilizado. É, digamo-lo assim, a jóia da soberania. Não tem de estranhar se lhe exigimos que cure do seu brilho!


Joaquim Maria Cymbron

2 comentários:

António Conceição disse...

Não sou juiz (sou advogado), mas não subscrevo inteiramente o que diz. Há infinitas causas para o mau funcionamento e descrédito da Justiça, mas não creio que os magistrados sejam a primeira.
Do meu ponto de vista, a primeira é a própria sociedade. A esfera do jurídico foi contaminada pela esfera da ética e exige-se hoje ao Direito que assegure os valores éticos que ele não tem que assegurar. A ética desapareceu fundiu-se no Direito e o que não for objecto de sanção ou tutela jurídica passa por eticamente irrepreensível.
Um bandido é um bandido e um vigarista é um vigarista. Mas se por uma razão qualquer, mesmo de natureza formal (uma escuta nula, por exemplo), a ordem jurídica não conseguir sancionar o bandido ou o vigarista, logo este aparece em toda a parte, orgulhosíssimo, como se a sua conduta não fosse digna de censura. O mundo do futebol e do poder local está repleto de exemplos destes.
Ora, não é o Direito que tem que resolver este problema. São os princípios e os valores éticos que regem uma sociedade. Qualquer indivíduo bem formado devia ter vergonha de ser visto a tomar café com determinadas figuras públicas cuja conduta reprovável as torna consabidamente não frequentáveis, apesar de nunca judicialmente condenadas. Em vez disso, toda a gente parece sentir-se muito honrada por aparecer numa foto de revista ao lado desses figurões duvidosos.
Por outro lado, há a tendência generalizada, para a infantilização e a desresponsabilização, pedindo ao Direito que tutele a minha infantilidade e irresponsabilidade. Tenho um cancro no pulmão por ser fumador? A culpa não é minha. Há que responsabilizar a tabaqueira que me vendeu o fumo. Escorreguei na piscina e parti uma perna? Alguém tem que me pagar, porque na piscina não havia nenhum aviso a advertir que o local era escorregadio. O dono da piscina não tem dinheiro? Tem que me pagar o Estado, porque não criou legislação que obrigasse o dono da piscina a avisar-me da natureza escorregadia do seu estabelecimento.
Há ainda o poder legislativo, esse, sim, um poder nefasto. Bastava que, sem mais, sem as substituir por coisa nenhuma, se revogassem todas as leis feitas nos últimos vinte anos, para o sistema jurídico ganhar logo nova credibilidade.
Quer-me parecer que só depois disto tudo podemos começar a falar de magistrados e advogados como responsáveis pelo estado de desgraça que vive a nossa Justiça.

Joaquim M.ª Cymbron disse...

Meu caro Funes:

Claro que a causa profunda é aquela que tão avisadamente apontou no meu outro blogue --- a crise de valores éticos e que aqui volta a lembrar.

E embora concorde que a culpa toca a mais gente (eu também me acho pecador), penso que aos juízes cabe o maior quinhão, pelas razões descritas no texto: são titulares de um órgão de soberania; são independentes nas decisões que tomam; e a eles cumpre interpretar as leis que temos.

Não tenho dificuldade em aceitar que, se outra fosse a lei, também seria diferente a Justiça. Mas isso diz respeito àquilo que o meu caro Funes diz com toda a lucidez e que creio não adulterar com esta síntese: perda generalizada do senso moral. Se ele fosse vivido em pleno, até se dispensavam os tribunais. Isso, porém, é mero ideal do qual só podemos e devemos aproximar-nos.

Eu, prezado comentarista, censuro os juízes dentro do quadro que vivemos. Aí e na medida que defini, é que me parece que são os principais responsáveis da desordem que sofremos.

A certa altura, eu escrevo que '(...)a afirmação de não ser o Direito uma ciência exacta, permite a alguns órgãos judiciários as maiores arbitrariedades.' Note-se bem: a alguns órgãos judiciários. Isto ressalva as prestigiantes figuras de magistrados integérrimos!