Toreador

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quarta-feira, 10 de julho de 2013

RECUSA DE DEPOIMENTO


O texto, que segue, é conteúdo de uma petição individual dirigida à Provedoria de Justiça para os fins que dela constam. (1)


JOAQUIM MARIA BOTELHO DE SOUSA CYMBRON, solteiro, maior,
 
ao abrigo das disposições conjugadas na CRP (art. 23.º, n.º 1; e 52.º, n.º 1),
 
vem pedir a V. Ex.ª que, em virtude da legitimidade que lhe é conferida pela nossa Lei Fundamental (art. 281.º, n.º 2, al. d),
 
requeira a fiscalização abstracta da constitucionalidade respeitante à matéria que consta do seguinte articulado:
 

PETIÇÃO INDIVIDUAL
 
1.º
 
Esta petição visa obter a fiscalização abstracta da constitucionalidade do disposto no CPP art. 134.º, n.º 1, al. a) e al. b).
 
 
MOTIVOS E FUNDAMENTOS:
 
2.º
 
A lei processual penal impõe o dever geral de testemunhar, ressalvando embora algumas excepções (CPP art. 131.º, n.º 1).
 

3.º
 
Algumas delas estão previstas nas duas alíneas do n.º 1 do já referido art. 134.º
 

4.º
 
Esta preocupação do legislador é digna dos maiores encómios.
 

5.º
 
Há realmente casos em que a testemunha pode sentir-se dilacerada por um conflito de deveres e de afectos: ou se mantém fiel à verdade que conhece, o que irá prejudicar o arguido que muito estima; ou para não atraiçoar este, desvia-se da verdade, comportamento que repugna à sua consciência, além de fazê-lo correr o risco de sofrer uma reacção jurídico-penal por ter mentido, bastante suave, é certo, atendendo ao tratamento privilegiado do regime consagrado no CP art. 364.º, al. b), mas de qualquer modo envolvendo condenação.
 

6.º
 
É, como expressivamente dizia José Mourisca, «pôr a testemunha entre Scila e Caribdes (...)» (Código de Processo Penal, II, Vila Nova de Famalicão, Tip. Minerva, 1931, pp. 265 e s.).
 
 
7.º
 
Luís Osório sustenta também a existência do conflito (Comentário ao Código de Processo Penal, III, Coimbra Editora, Lda., 1932, p. 326).
 
 
8.º
 
Situação esta que deve evitar-se tanto quanto isso seja possível.
 
 
9.º
 
No entanto, afigura-se ao ora peticionante que é o arguido o ponto nuclear dos interesses que esta norma visa proteger.
 
10.º
 
Deduz-se do que até aqui foi exposto que o arguido é quem determinou a ratio legis, condicionou a redacção do preceito e inspirou o legislador.
 
 
11.º
 
E, por isso, se deve levar em conta que a possibilidade de recusa em depor, louvável em abstracto e na generalidade, também pode conduzir à inversão da ratio legis.
 
 
12.º
 
Nem sofre discussão que, no quod plerumque accidit, a testemunha bem formada no carácter e de coração limpo, certamente deporá com gosto porque sabe que dela também depende a boa decisão da causa, maxime, quando é julgado alguém que lhe é querido.
 
 
13.º

Porém, também não pode excluir-se que haja pessoas que se encontrem numa das categorias previstas em ambas as normas aqui atacadas de inconstitucionalidade e que invocam o grau de parentesco para se eximirem a depor, por se encontrarem divididas não por um dilema entre dois pólos --- dever de verdade e dever de afecto ---, dilema esse que está cheio de riqueza humana, mas que vivem esse mesmo drama com uma disposição que vai precisamente no sentido oposto ao que a lei quer preservar: se diz a verdade, beneficia o arguido, quando até deseja o contrário; se mente, em princípio o arguido apanha-o melhor que terceiros, dada a ligação íntima que os une e aqui não há lugar à já referida benignidade do CP art. 364.º, al. b).
 
 
14.º
 
É sabido que casos patológicos não constituem regra.
 
 
15.º
 
Mas como existem, sempre que se possa encontrar meio de os prevenir de forma simples e com aquele carácter de generalidade, que tem de acompanhar qualquer norma jurídica, não deve o legislador furtar-se a regular disciplina que evite as consequências desses estados anómalos.
 
 
16.º
 
A verdade é que eles produzem efeitos e bem contrários a um são critério do Direito.
 
 
17.º
 
Ora, se se estipulasse que aqueles com legitimidade para recusar o depoimento, nos termos actuais do previsto no artigo 134.º, n.º 1, al. a) e al. b), não poderiam exercer esse direito se tivessem sido arrolados pelo arguido, parece ao ora peticionante que se teria encontrado solução equitativa para o problema.
 
 
18.º
 
Na verdade, os que se encontram nestas condições de privilégio já não poderiam alegar que lhes dói muito depor, atendendo ao facto de estarem ligados por laços muito fortes ao arguido, e temerem comprometê-lo, ou saberem de antemão que isso vai acontecer infalivelmente, porque tudo quanto pudessem dizer, com verdade, seria desfavorável ao arguido.
 
 
19.º
 
Sendo o arguido o dominus do que mais convém à sua defesa, ao arrolar os que gozam da regalia de poder recusar depor como testemunhas, libertou-os ipso facto desse dever de afecto, pelo que não há violência sobre a sua sensibilidade, no caso de ser autêntico o afecto que dizem nutrir pelo arguido.
 
 
20.º
 
Por outro lado, invocar razões de sentimento para contornar a obrigação geral de testemunhar quando o que subjaz é o comodismo ou, pior, o propósito acintoso de deixar o arguido diminuído na sua defesa, ou até com sérias dificuldades de a levar a cabo (quantas são as vezes em que não há mais ninguém em condições de testemunhar do que os que podem recusar-se a fazê-lo), proceder deste jeito, repise-se, isso não é genuíno sentimento, mas mera simulação de um pieguismo de mau gosto.
 
 
21.º
 
Tal estado de espírito, de modo algum, merece esperar protecção da ordem jurídica.
 
 
22.º
 
E como está a lei, a verdade é que os titulares da faculdade de recusarem depoimento têm cobertura para fugirem a testemunhar, levados por razões que, como acima ficou descrito, nada apresentam de louvável.
 
 
23.º
 
Se for introduzida a ressalva que aqui se peticiona, ficariam essas pessoas sujeitas ao regime geral da obrigatoriedade de testemunhar, sendo deste modo adjuvantes da realização da Justiça, o que afinal devia ser o papel de cada um de nós.
 
 
24.º
 
Mantendo-se o que está em vigor, o arguido vê cerceadas as suas garantias de defesa, com o que se viola a lei fundamental (CRP art. 32.º, n.º 1).
 
 
25.º
 
Há também outra razão de prudência e coerência, a impor novo tratamento destas normas que o ora peticionante considera viciadas de inconstitucionalidade.
 
 
26.º
 
Na verdade, em obediência ao princípio da adesão, «o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.» (CPP art. 71.º).
 
 
27.º
 
Imaginemos que estamos perante uma das situações contempladas no artigo 72.º do mesmo código e figuremos a seguinte hipótese: o arguido quer construir a sua defesa sobre o depoimento de um ou mais que um irmão ou cunhado.
 
 
28.º
 
Na acção penal não pode servir-se desse meio, por força do expresso num segmento de uma das normas censuradas nesta petição; mas no pedido cível já isso lhe é consentido porque parentesco ou afinidade no segundo grau da linha colateral não são fundamento de recusa a depor (CPC art. 618.º).
 
 
29.º
 
Ambos os julgamentos se realizam: no processo-crime, o arguido sai condenado; no cível, é absolvido da indemnização que contra ele fora pedida com base no facto pelo qual respondeu na acção penal.
 
 
30.º
 
E a prova testemunhal foi decisiva para a absolvição!
 
 
31.º
 
Ora a absolvição do pedido cível ou teve de apoiar-se num juízo de falta de ilicitude, ou então considerou que o R. agiu sem culpa; entretanto, a sentença, no processo-crime onde o R. é arguido, entendeu que havia ilicitude e culpa, pelo que condenou.
 
 
32.º
 
Destas duas sentenças em colisão, esgotam-se os recursos ordinários sem que haja vencimento para qualquer das partes.
 
 
33.º
 

Temos, assim, oposição de acórdãos pois, para chegar a tal resultado, esses acórdãos tiveram de pronunciar-se sobre a mesma questão fundamental de direito --- a ilicitude ou a culpa do arguido, simultaneamente R. --- e fizeram-no em sentidos diferentes.
 
 
34.º
 

Que seja o mesmo ou diferente o diploma legislativo, em que vem tratada a questão de direito que recebeu solução oposta, isso não obsta à oposição que fundamenta recurso para uniformização de jurisprudência, pois no entender do grande Mestre Alberto dos Reis «se a regra, posto que incorporada em ordenamentos jurídicos distintos, deve ter, num e noutro, a mesma significação e o mesmo alcance, estamos no domínio da mesma legislação; (...).» (Código de Processo Civil Anotado, VI, Coimbra Editora, 1985, p. 275).
 
 
35.º
 
E que questão de direito é essa que recebeu solução oposta?
 
 
36.º
 
É obviamente a questão da ilicitude ou da culpa.
 
 
37.º
 
A valer esta posição, tal como a vê o ora peticionante, pergunta-se se este é o caminho para uma maior economia processual.
 
 
38.º
 
O mais chocante de tudo isto é que a ordem jurídica multiplica os seus cuidados de protecção ao arguido, e aqui deixa-o mais inerme do que na posição de R., negando-lhe armas processuais que lhe concede no cível!
 
 
39.º
 
Sendo talvez a ilicitude e a culpa as questões de maior melindre, dentro do direito penal, porque delas depende o julgamento dos factos por mais que, na lei respectiva, estejam tipificados como crimes, até por aqui e para além do assinalado vício de inconstitucionalidade, custa aceitar o regime atacado nesta petição.
 
 
 
Termos em que se espera de V. Ex.ª a decisão de submeter à apreciação do Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva da constitucionalidade dos preceitos contidos no CPP art. 134.º, n.º 1, al. a) e al. b), dentro do sentido e do alcance que foi aqui peticionado!
 
 
Joaquim Maria Cymbron
 
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JMC