O nosso Código Penal consagrou a figura de um crime concretamente impossível. Trata-se, em certos casos, do comportamento previsto e punido no seu artigo 369.º, n.º1.
Não há então condenados ao abrigo desta disposição legal? --- Se forem magistrados, nem um se conhece!
A tendência de os considerar imunes do crime de prevaricação é antiga. Mas embora no Código Penal de 1886, bem como no direito vigente até à revisão operada pelo Decreto-Lei n.º48/95, de 15 de Março, a impecabilidade naquele crime já levantasse lídimas reservas de ordem ética, ela ainda se podia entender à luz da dogmática jurídica que exigia o dolo específico para consumação do delito. Ora este é de prova dificílima.
Agora, que a lei se contenta com o dolo genérico, como se inocentam os senhores magistrados? --- Deste modo: a jurisprudência, uniforme e religiosamente observada, tem decidido que os arguidos não agem conscientemente. E aos que demandam os Tribunais, na esperança de ali encontrar a parcela de Justiça que é possível alcançar neste mundo, é isto que lhes sai do ádito daquelas casas --- o magistrado arguido procedeu sem consciência do ilícito praticado!
Solução fácil e cómoda, o que é diferente de estar correcta.
Na verdade, o dolo tem dois elementos estruturais: conhecimento e vontade. Basta-nos o primeiro elemento, para o que aqui se diz. Com efeito, é nele onde se acha a tábua de salvação para o comportamento que objectivamente cai dentro do tipo legal do crime, a que chamei crime impossível de realizar.
Temos assim que não há crime sempre que alguém não representa ou não tem consciência da antijuridicidade do facto que perpetrou. Ora isto, teoricamente, não se encaixa com a qualidade profissional de nenhum magistrado. Mas como vem sendo ininterruptamente julgado, afinal há quem entenda que é compatível.
Todo e qualquer magistrado que, conscientemente, no exercício das suas funções se afaste e decida contra legem, incorre no crime p.p. no CP art. 369.º, n.º1. Este enquadramento ajusta-se na pura abstracção do que estatui o citado preceito. Porque, o que se nos depara --- e repito a afirmação acima produzida --- são decisões contínuas no sentido de que o senhor magistrado não agiu conscientemente. Por vezes, isto verifica-se com uma intensidade tal que é dramático e preocupa.
Vou, pois, discorrer na perspectiva do que sucessivamente obtém vencimento nos nossos Tribunais.
E assim direi que, em função das suas características pessoais, os magistrados preenchem quatro categorias: probos; ímprobos; competentes; e incompetentes. Imediatamente se vê que esta classificação permite quatro combinações, de que resulta o seguinte quadro: probos e competentes; probos, mas incompetentes; ímprobos, embora competentes; e, por fim, ímprobos ao mesmo tempo que são incompetentes.
Portanto, a cada um de nós só resta o caminho de não cair sob a alçada de magistrados incompetentes. E, se algum tiver essa desdita, a disjuntiva que surge já não será a de aspirar a um magistrado probo e incompetente, ou desejar um magistrado ímprobo e incompetente. Ao coitado, apenas se apresentará este agudo dilema: ou fica à mercê de magistrado competente, mas corrupto; ou, para fugir a este perigo, agarra-se ao que é íntegro e coloca-se nas mãos de um primário.
Mais uma vez a fatalidade do mal menor. E especialmente dolorosa, porque é certo que ocorre na mais valiosa manifestação de soberania: o poder judicial.
Na corporação de magistrados, só há uma eleição legítima --- a que se estabelece depois de separar os magistrados profissionalmente idóneos dos outros. Desta divisão, só sobreviveriam os que são honestos, sabedores do Direito, e capazes de aplicá-lo.
Em Portugal, ainda os há. Minoritariamente, mas existem!
Joaquim Maria Cymbron
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