A 14MAR17, apresentei a Sua Excelência o Primeiro-Ministro uma petição individual para os fins estabelecidos na CRP art. 52.º, n.º 1. Com data de 23MAR18, recebi resposta assinada pelo Chefe do Gabinete da Secretária de Estado Adjunta e da Justiça, o qual sufraga um parecer que havia recebido.
Respondo, portanto, a este pela paternidade moral do que me é enviado; e, a quem subscreve o parecer, pela autoria material do mesmo.
Ex.mos
Senhores:
As palavras, que seguem, vão ligadas à petição enviada por mim ao Primeiro-Ministro de Portugal. O resultado obtido mostra bem a qualidade dos governantes que temos!
Deve ter sido, na verdade, muito árduo o trabalho realizado por quem emitiu o parecer acolhido por V. Ex.ª, Sr. Dr. João Freire. Se foi bom ou não, vê-lo-emos.
Eu dirigi ao Governo, na pessoa do Senhor Primeiro-Ministro, uma petição individual. Nessa petição, requeri a esse órgão de soberania que submetesse ao Tribunal Constitucional a fiscalização da constitucionalidade da interpretação dada à norma contida no CPP art. 64.º, quando conjugada com outros preceitos do mesmo diploma legal. Acrescentava ainda que, na eventualidade de improceder o pedido de uma inconstitucionalidade por acção, teria então de ser atendido o que formulei no sentido de estarmos diante de uma inconstitucionalidade por omissão e que, por mor disso, devia proceder-se em conformidade.
Com esse objectivo, recorri ao ius positum, contra o qual expressei o meu desagrado. Fi-lo nos termos que constam da petição e alongando-me quanto julguei estritamente necessário. Usei argumentação tirada da própria lei, mostrando como nela se encontram elementos que julgo suficientes para o triunfo do que sustentava e continuo a sustentar. Infelizmente, V. Ex.ª responde trazendo para me contrariar um arrazoado cheio do que eu atacava na minha pretensão.
Isto foi, sem tirar nem pôr, o que V. Ex.ª fez. Sancionou o teor de quantas páginas o autor do parecer derramou, contendo os argumentos bem meus conhecidos e que eu expressamente tinha impugnado.
Responder ao arguente com aquilo que ele argui de insubsistente, merece um nome: ciclo vicioso! Mas não deixa de ser curioso que, na ânsia de acumular doutrina, o autor do parecer tenha esquecido a visão de Paulo Pinto de Albuquerque1, a respeito desta matéria. Ele esqueceu e V. Ex.ª não reparou. Duas coisas ou dois momentos muito felizes. De facto, é depoimento que não encaixa bem num discurso bastante gasto como é o que foi vertido no parecer que eu critico.
Não se encontra, em tudo quanto aleguei para fundamentar a minha pretensão, uma só palavra de censura à preocupação de garantir ao arguido uma defesa eficaz em processo-crime. O que há, quanto a mim, é uma lacuna manifesta na forma mais feliz de dar cumprimento a fim tão louvável, constituído por uma plena, límpida e eficaz defesa do arguido, quando responde em Tribunal. Essa lacuna preenche-se, nos termos por mim indicados, sem tocar no que, de muito meritório, estabelece o instituto da defesa oficiosa. Mas o caso é que virtudes, Senhores, nem sempre ocultam os defeitos daquilo que já gozamos. E bom é que se aproveite essa falta, porque só deste modo se pode avançar. Em todos os campos!
Crede, Senhores, que lá chegaremos. Entretanto, resta-me prosseguir lutando pela melhoria de uma situação. Não apenas em meu benefício: ela toca a todos que queiram usar desse meio de defesa, direito irrefragável que tem de ser reconhecido e acabará por sê-lo.
Entre as duas vias que se abrem para uma defesa do arguido – a autodefesa e a defesa por patrono imposto –está visto de que lado parte a exclusão. Não se assaquem, pois, culpas a quem não as tem.
Não vou aqui repetir todos os preceitos então invocados: seria fastidioso e, com grande probabilidade, revelar-se-ia um esforço vão. Se V. Ex.ª, bem como o autor do parecer, não fizeram nenhum caso do que aleguei, quando era altura própria, não me parece que seja agora que lhe vão dar atenção.
De resto, seria um passo inútil, uma vez que o processo está encerrado e, em cima disso, vejo que se porfia em fechar os olhos perante uma questão que é incómoda para muito boa gente; por outro lado, resolvi não me dar ao trabalho de alinhar novamente os referidos preceitos, porque eles já estão numa peça também publicada neste blogue.
Do Tribunal Constitucional saiu o conselho de que eu devia seguir a via da fiscalização concreta da constitucionalidade. Como se eu não a conhecesse! Largos são os contos que aqui eu podia aportar para que fossem tomados em consideração. Limito-me a perguntar: conheceis, Senhores, algum advogado disposto a patrocinar um só cidadão que seja, numa causa assim? Eu não tenho notícia de nenhum. Se existe, é certamente uma auis rara na sua espécie.
A Presidência da República foi mais parca em razões: informou-me que «(...) de momento não se afigura oportuno dar sequência ao solicitado.» Assim me inteirei que o interesse, ligado ao que foi peticionado por mim, dependerá talvez de outros momentos mais propícios ao palácio de Belém.
Neste percurso, ficou de fora a Provedoria de Justiça, a qual, generosamente, veio repetir o comportamento do Tribunal Constitucional, consoante já atrás aludi. Porém, para lá da objecção então formulada – a do pouco ou nulo apetite de advogado que tome em mãos tal causa – agora há mais. Com efeito, às atribuições da Provedoria de Justiça cabe o poder de iniciativa em situações desta natureza, competência de que o Tribunal Constitucional carece.
Saber que as minhas alegações eram derrotadas, custar-me-ia; mas vê-las rebatidas e vencidas com apoio nos mesmíssimos fundamentos por mim atacados, é ser colocado perante um espectáculo de puro delírio.
V. Ex.ª, repito, louvou-se num parecer escorado em decisões que eu próprio citei, comentando-as. Nas que ali foram desenvolvidas, não se revela nenhum mérito estranho aos que tratam o Direito; do mesmo modo, naquele documento também não se descobre qualquer defeito naquilo que eu disse, ao criticá-las. Que moveu, pois, V. Ex.ª para aprovar parecer tão pouco curial? – Nele não houve certamente a vontade de demolir a minha construção pedra a pedra, porque nem capaz foi de lhe tocar; o único intuito que dá a impressão de ter é o de esconder, soterrar, reduzir a pó! E para quê? Para respirar o triunfo mendaz de uma glória passageira!
No mínimo, nesses corredores de um departamento governamental, optou-se por tomar o lugar que pertence ao Tribunal Constitucional. Enfim, uma inocente trivialidade na prática da política caseira, onde soam umas liberdades muito cantadas, mas pouco vividas até porque os que mandam, não as observam. Contudo, nem é tanto por aí que eu vou.
Aqui chegados, distingamos se é que cabe distinção:
Qual a distância entre o direito de petição individual, consagrado na CRP art. 52.º, n.º 1 e aquele que nos assiste quando recorremos nos termos gerais da lei processual? Não será a diferença meramente formal, porque o mesmo é o sopro que os anima?
Realmente, temos um quadro que é o seguinte: na petição, o seu autor procura obter a defesa dos seu legítimos direitos; no recurso, a parte reage contra uma decisão que vai mexer com a sua esfera jurídica. Logo, se qualquer cidadão tem legitimidade para formular uma petição individual nos termos conhecidos, não se compreende como se lhe nega o direito de recorrer por si mesmo. Surpreendentemente, é isto que a lei processual determina (CPC art. 40.º e art. 58.º, com a excepção prevista no art. 42.º; e no CPP art. 64.º, n.º 1, al. e).
O recurso processual é um ponto alto da lide que se desenrola. Não prevejo contradita neste passo, e nem sequer devo estar desacompanhado. Poder-se-á objectar que este tipo de recursos e a iniciativa para uma petição individual são de impossível comparação? Creio, no entanto, que a objecção apontada, a haver quem a formule, não procede.
É certo que, no recurso processual, se submete uma questão controvertida à apreciação de uma instância superior, a qual é mais qualificada, pelo menos por definição. Sendo assim, é natural que se requeresse um cuidado mais apurado na peça que sobe, porque ali é maior o grau de exigência ou se supõe que é, enquanto na elaboração de uma petição individual, não haverá motivo para tantas cautelas! Porém, esta argumentação é inadmissível! Como se ousa desconsiderar a seriedade, o rigor, direi mesmo a austeridade que há-de presidir ao requerimento contido numa petição individual, reservando estas notas de actuação só para o recurso processual? Pois numa petição individual não se jogam valores iguais e, quantas vezes, superiores aos que se decidem por via de um recurso processual?
Haja decoro, Senhores! Porque se é verdade que o autor de uma petição individual, por ser bisonho, não alcança a pretensa sublimidade de quem, por ofício, alega num recurso processual, impõe-se que não olvidemos um bom número de advogados, cujo patrocínio, a toda a prova, nem o nome de imperícia merecerá, porque foi declaradamente doloso.
Em suma:
Estas duas figuras – a petição individual, de um lado; e o recurso penal, do outro – as duas, analisadas uma a uma, mantêm estreita afinidade. Por isso, o autor da petição individual não difere em categoria de quem assina uma peça, na qual processualmente se recorre. Se isto não se concede, cumpre então decretar a assistência obrigatória por advogado a quem pretende lançar mão da garantia constitucional que é o regime da petição individual. Assim e prontamente! Sem o que se rompe a simetria que a dogmática do sistema jurídico há-de exibir, sob pena de fácil desmoronamento.
Confesso a V. Ex.ª, Sr. Dr. João Freire, bem como ao autor do parecer recebido por V. Ex.ª, que tal medida não é muito de recear. O seu efeito depressa desencadearia um alarido insuportável, com o qual a demagogia, em que estamos mergulhados, tem dificuldade em lidar. Mas lá que a coerência o manda, isso manda!
Daqui se infere que não repugna ver a petição individual como figura de recurso que um mero cidadão faz subir perante os órgãos de soberania. Se assim é, como parece, não se compreende como não há-de o mesmo cidadão ter a necessária legitimidade para recorrer no decurso de uma lide processual. Isso há-de acontecer. E quando chegar, acabará este regime perfeitamente ilógico.
Da legitimidade para a petição individual, há-de passar-se à legitimidade para recorrer sem entraves; e esta acabará por se estender à autodefesa em toda a plenitude. Defesa, tudo o que acabou de expor-se agora à volta deste conceito, mesmo tudo, sem que falte uma vírgula, é defesa de uma ponta à outra. Só espíritos acanhados ou possuídos de rígido formalismo não o reconhecem.
É extraordinário como são visíveis as tendências do "não lhe mexas que assim vai a nosso jeito", táctica esta que é escrupulosamente observada por parte de alguns que, dos pés à cabeça, nem chegam a cobrir-se de vestes revolucionárias. São os mais perigosos. Todos eles têm, nitidamente aversão à mudança. Nalguns, que por ali se perfilam, adivinha-se um sentimento de insegurança; noutros, já a intenção é maliciosa. De todos os modos, é sempre revolucionário o impulso que os move: hesitante ou até inconsciente, nos primeiros; lucidamente agressivo, nos segundos.
Muitos estranham esta reacção. Ela, porém, é naturalíssima. A minha formação ensinou-me que o fogo revolucionário só arde para reduzir a cinzas o que foi criado. Mas nem sempre o efeito destruidor é resultado de quentes labaredas. Não poucas vezes a devastação provém de uma deliberada inacção. Esses conscientes propósitos escondem-nos, nos seus peitos cavernosos, aqueles que, com maior ou menor astúcia, ajudam a formar o exército de filhos queridos da Desordem!
Formam
a falange pestífera dos conservadores!
Joaquim Maria Cymbron
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1. Comentário do Código de
Processo Penal, art. 62.º, n. 13; e art. 63.º, n. 4, Universidade
Católica Editora, 2.ª ed. actualizada.
NB.: A versão original encontra-se em arquivo de suporte gráfico. Entendi acrescentar-lhe umas notas com maior carga política. O que tem, estritamente jurídico, continua intacto!
JMC