Cumpre esclarecer que S. Miguel não é, nem
quer ser por direito próprio, a ilha dos lagartos. Sem sombra de dúvida que não
tem nisso qualquer empenho. Os lagartos, que por ali rastejam, chegaram quase
todos de fora, e cobrem de letal veneno a terra sagrada do Arcanjo. Realmente,
na sua maioria, são importados.
Devem provir da ilha do Komodo e de mais umas
quantas outras, lá para os confins da Indonésia, onde habitam os sobreviventes
de uns espécimes de passadas eras. Animais de aspecto pouco tranquilizante, ao
caminhar arrastam com eles uma baba pestilenta, que escorre das suas bocas.
Essa baba repugna e mata!
Impunha-se
este exórdio, que vai destacado, para obstar a generalizações descabidas e
permitir que se avalie o que segue, nos precisos termos em que a minha
consciência o traçou e a minha vontade lhe deu corpo.
Feita
esta aclaração, é altura de principiar a tratar dos lagartos que,
perigosamente, se movem na bendita ilha de S. Miguel. E esse propósito
atira-nos para o seio de alguns Tribunais,
porque é aí que eles semeiam a devastação. Mas, contrariamente aos das paragens
orientais, os exemplares desta raça deram em refinar e são de muito esquisito
paladar: têm presas da sua especial predilecção, rejeitando outros nacos que,
por serem de mais pesada digestão, escapam à sua voracidade. Questão de
estômagos mais delicados, talvez.
Contudo,
os lagartos também se enganam. E, às vezes, decidem ferrar o dente em quem não
deviam morder. Felizmente para nós, o instinto sanguinário deles não os adverte
de que só o lançar de olhos sobre a vítima escolhida ou os silvos de uns
animalejos, que os guiam na depredação, não afastam a probabilidade de que
surja um erro.
Foi afortunado o nosso António José da Silva, quando imaginou uma ilha dos lagartos, à frente de cujo governo, colocou o companheiro leal da inesquecível figura desenhada pelo génio de Cervantes. No entremez criado pelo Judeu, a um homem que enjeitava Justiça pintada, Sancho Pança, com a naturalidade dos ingénuos, respondia que não havia naquela ilha outra Justiça senão pintada.1 Desta ironia crítica, infere-se que o mal provocado pela desconcertada aplicação do Direito não é de hoje: com efeito, nunca os pratos da balança da Justiça foram de fácil equilíbrio. Mas é custoso supor que alguma vez andasse a Justiça tão pintada como agora.
Havia
de surpreender-me se alguém ignorasse que é ao Direito, no domínio temporal,
que se atribui o papel mais marcante como veículo de realização da Justiça, e
dele se espera que cumpra a sua função. Função realizada coactivamente, porque
a realização espontânea deriva da ascese interior e do sentimento religioso de
cada um. De qualquer modo, repise-se esta ideia: o Direito não deixa de ser
instrumento da Justiça.
Todavia, nos dias que correm, não direi invariavelmente, mas com uma frequência indesejada, é o Direito um instrumento que maltrata a Justiça, e ninguém de são juízo, aquele que sobrar a quem ainda não perdeu, por completo, a noção da Verdade e do Bem, nenhuma dessas pessoas, insisto, irá negar que o Direito deixa, após ele, um rasto desolador, dando da Justiça uma imagem que é bem negra. Os lagartos, os que se meteram em S. Miguel como o intruso é encontrado em propriedade alheia, depois de ali entrar sem ser convidado, e os raros que ali nasceram como aberração de um acaso, daqueles que a Natureza tem, esses bichos de aterrar sabem de sobra a razão pela qual assim me pronuncio. De resto, nem outra coisa havia a esperar: quando o Mundo, todo ele e nos mais diversos campos, anda revolto da maneira que vemos, natural é que já ninguém se admire que seja hediondo o espectáculo oferecido pela quase generalidade dos nossos Tribunais. Aquilo a que se assiste é ao corolário desgraçadamente lógico de premissas sem tino e desconjuntadas de uma à outra ponta.
A
Justiça é um valor ideal que se persegue, mas que jamais se alcançará plenamente
in statu uiae. Integra-se na harmonia
do Ser, na sua Verdade e no Bem que naquela se
encerra e dela flui. Por isto mesmo, na sua abstracção, única forma de a
conceber, é a Justiça inatacável. E, no ponto de delírio que tocámos, o mais
triste, o mais trágico e o mais inquietante é o quadro funesto, já impossível
de disfarçar ou de esconder, de uma Justiça profanada especialmente, direi
mesmo quase exclusivamente, por aqueles que têm obrigação redobrada de lhe
prestar culto – os hierofantes que envergam uma beca, em vernáculo, os
Magistrados!
Valha-nos, ao menos, o facto de já não se poder ocultar este panorama. Assim, também o povo só andará iludido se quiser. Convém ter em mente que não são pequenas as culpas por parte do cidadão comum: muita bulha, mas lá reagir, isso não é com ele, seria pedir-lhe demasiado. Em cada mesa de café, de um instante para o outro, pode erguer-se um estado-maior da reviravolta, e as ruas são um passeio colorido de cartazes e bandeiras para os que gostam de vociferar ameaças de mistura com alguns gritos patrióticos. Além disto, nada! E, neste Carnaval, se esgota a coragem. O cúmulo é que ainda haja quem refute a conclusão de que a desordem revolucionária gerou uma sociedade de egoístas e acomodados, sem grandes horizontes, mas principalmente sem um rasgo de valentia.
Correcto
seria que todos fôssemos agentes de Justiça. Em contrapartida, que se vem
observando? – Criou-se o mau hábito de reduzir os agentes de Justiça a uma
classe. A um maior crescimento de profissões de fé nas virtudes da Democracia
e sonoras proclamações de princípios a condizer, observa-se que os lacaios
do sistema correspondem fechando-se cada vez mais em castas intocáveis.
Presto homenagem aos correligionários que ali tenho: no seu foro íntimo, esses
lacaios devem acreditar na Democracia tanto como eu!
Em vez de favorecidos do sistema, optei por falar em lacaios do sistema. Fi-lo intencionalmente: são lacaios porque muitos deles nem sabem que amo servem. Quem é esse senhor? – Não importa! A eles, basta-lhes satisfazer a ambição de participar no poder, envoltos na capa de uma titularidade mistificada, e abarrotarem de contentamento por experimentar essa vertigem que afaga os sentidos, pese embora, neste caso, os venha tornar incapazes de medir a profundidade do ludíbrio em que tombaram. Mas este logro não os aflige: o que lhes interessa é que foram poder. Essa volúpia, ainda que dure pouco, transmite-lhes imensa vaidade pela falsa convicção de que foram alguém quando um dia mandaram. À sua maneira, por um curto espaço de tempo, foram reis de um reino fantástico, acharam compensação para muitas frustrações, enfim, gozaram. Daqui, não é grande o prejuízo que resulta. O pior, a mais ruim consequência está no que fizeram e, sobretudo, no que não fizeram. Transposto para a esfera política da actividade judiciária, o desastre mais grave é quando alguns Magistrados se esquecem da sua condição, e tomam a forma de medonhos e repelentes lagartos.
Caiu
em desuso falar-se do pecado social. Não o estranhemos, porque até o pecado
individual anda hoje muito esquecido. E, no entanto, um e outro existem. O
pecado social é o somatório dos pecados individuais. Pelo pecado individual
assim como pelo pecado social, os homens pagam. A História Sagrada, ao lado das
profanas, está repleta desses castigos em que Deus consente para escarmento dos
povos, e cujo significado é ocultado por bocas que se calam em vez de o
anunciar. Mesmo os não-crentes na força de um Espírito vivificador, se forem
intelectualmente honestos, não podem negar que desmandos, como os que hoje
sofremos, cedo ou tarde traçam sempre um rumo que conduz
à devida punição.
Em 1755, sacudida por um sismo inclemente, Lisboa ruía violentamente. Este fenómeno físico parecia anunciar o cortejo das comoções sociais que se lhe seguiram: o regalismo monárquico, sob a batuta de Pombal; uma guerra civil bastante cruenta; o liberalismo, que inaugurou uma época pejada de lutas intestinas; o jacobinismo republicano, dando consagração aos ideais dos enciclopedistas franceses e cujo primeiro brado de vitória já soara nos cânones do liberalismo; por fim, a situação em que nos debatemos. Como identificar esta fase? – É o período da decomposição! Não vejo que outro nome possa dar-se-lhe, a não ser este. Para os tíbios, parece ser hora de proceder a inventário.
As
etapas anteriores foram nefastas e tiveram o propósito de conduzir-nos até onde
nos encontramos: indiferença ou desânimo, como atrás se referiu ao tratar da
ausência de toda e qualquer reacção eficaz. Conquanto perverso, havia um
objectivo nos sistemas que vigoraram nessas alturas e, portanto, podiam ser
classificados. Mas agora? – Já acima ficou dito: chegou a hora da decomposição
ou dissolução! Isto, porém, não cabe em nenhuma categoria conhecida da ciência
política e, desta vez, o vazio vocabular traduz bem a desolação que se vive.
A nota saliente deste macabro desfile assenta num denominador comum – chamam-lhe Democracia, essa coisa obscura que não chega a definir nada, porque a sua definição teórica não tem correspondência na vida concreta. A Democracia é a crença dos maus e dos fracos de espírito: uns e outros, no fundo, são dignos de dó, porque a Democracia, para eles e para os que não comungamos dessa superstição, é o caminho do suicídio colectivo.
Se
assim fustigo a Democracia, porque são tantas as culpas que, desde há
anos, lanço asperamente sobre alguns membros da nossa Magistratura, e às quais
aqui volto nas palavras que deixo escritas? Afinal, onde está o culpado? – Não
custará muito compreender a razão pela qual aponto as baterias sobre os
Magistrados, uma razão que é minha e que, obviamente, não colherá o apoio de
todos, possivelmente de ninguém, mas também confio que não será rejeitada com o
fundamento de ser incoerente.
A questão é muito simples. Ao longo dos tempos e até aos desconchavos modernos, o poder judicial era o mais forte sinal de soberania, a sua nota mais distintiva: soberano sem poder judicial ou julgador sem soberania, aborde-se o problema pelo lado que se quiser, era uma quimera e, como quimera sempre esta matéria deveria ser considerada. Em Portugal, os próprios Reis, entre todos os atributos de uma soberania plena, prezavam especialmente a missão de julgar. Delegavam este ofício nos Juízes da Corte, mas não se despojavam do poder que andava inerente àquela função e do qual eram senhores. Guardavam-no ciosamente. Era prerrogativa exclusiva dos monarcas o exercício de misericórdia para com o condenado e, deste privilégio, nunca abriram mão. Movia-os, tudo o leva a supor, o sentido da prudência e um autêntico impulso de caridade, mas aqui só importa ver a manifestação da sua majestade como soberanos que eram. Tão fundas eram as raízes desta legitimidade que os dogmas liberais não a subtraíram à esfera de competência da Coroa, antes a confirmaram, atribuindo-lhe a força necessária ao uso do direito de graça ou clemência. E as instituições republicanas também conferiram poder equivalente àqueles que representam o Estado.
Bem
parece, pois, que este vestígio de um antigo poder associado a outro, que era o
poder supremo, mostra a grande parcela de verdade que há na conexão entre o princeps e o iudex. No entanto, não fiquemos por aqui:
No seu enunciado abstracto, nem a decantada divisão de poderes, outro dos novos ídolos, mito tão irrealizável como a Democracia, apesar da utopia que é, mesmo ela não consegue roubar ao poder judicial o lugar que justamente lhe pertence. Por breves instantes, dentro de uma linha meramente especulativa, admitamos o que, num raciocínio honesto, de modo algum se pode conceder. Imaginemos, então, que a proclamada separação se dá. Nesse caso, logo descobriremos os predicados que o poder judicial ostenta: órgão independente; fechado sobre si mesmo; e o único órgão de soberania que escapa ao negativíssimo sufrágio popular. Nem a corporação militar exibe tão pujante força.
A
Magistratura, na qualidade de corpo visível do poder judicial, que o é
indisputavelmente, com particular destaque a Magistratura Judicial, esta classe
detém a vara da Justiça. O seu poder é predominante e decisivo: predominante,
porque os seus comandos preferem aos de todas as outras autoridades;2
decisivo, visto que, a par da propriedade acabada de assinalar, se a
Magistratura tropeça, com ela falha o poder judicial, e mesmo que o restante
aparelho político funcione, vem tudo a terra, já que não é razoável aceitar que
se faça Justiça, onde grassa a anarquia. Isto diz bem a quanto monta o poder
judicial porque se ele, isolado, é impotente para fazer respeitar a ordem,
basta que se demita dos seus deveres para, inelutavelmente, reduzir a zero os
outros dois poderes. Daqui, a grandeza do poder judicial e, ao mesmo tempo, a
sua imensa responsabilidade; também, por este motivo, ele é a jóia mais
preciosa da soberania.
Por isso, as censuras a certos Magistrados constituem o tema central deste documento. Em qualquer grau de saúde pública, seria curial a minha análise; nos gravíssimos momentos que atravessamos, muito mais ela se justifica. Se, na balança da Justiça, o fiel reside na Magistratura, é da mais elementar higiene mental não olvidar que a espada está com as Forças Armadas. Quando o fiel não encontra o correcto equilíbrio da balança, nunca será excessivo lembrar que a espada vem corrigir esse defeito. É lição inexorável da História!
Joaquim
Maria Cymbron
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- O Grande Governador da Ilha dos
Lagartos, Cena Primeira.
- CRP art.
205.º, n.º 2.
JMC