Qualquer casa, desde que tenha
espaço suficiente, guarda sempre um recanto a que os donos dedicam especial
cuidado, e se esmeram por lhe dar um aspecto mais convidativo do que ao
restante da habitação.
A nossa capital construiu o
Terreiro do Paço em priscas eras e reergueu-o dos escombros de um terramoto; enfeitou-o;
e ali tem o seu salão nobre. Quanto a
mim, foi escolha acertada.
É associado ao poder político.
Falar do Terreiro do Paço soa a mando. Embora não se verifique, nos dias que
correm, uma correspondência absoluta entre os dois, o facto é que a inércia da
linguagem pesa alguma coisa e a assimilação continua. Convenhamos que não é
inapropriada, pois o Estado continua bem representado naquele lugar.
Alguns chamam-lhe Praça do
Comércio. Sempre preferi a designação histórica. Mas hoje é mesmo a Praça do
Comércio, porque é reflexo de comércio no pior sentido da palavra, comércio da
falta de honra e de pudor, comércio de carne humana como é espelho fiel a que
se estende no chão e se torna visível na imagem que encima este texto.
E a infâmia não é só dos
políticos. Debaixo destas mesmas arcadas, abre-se a porta para o mais alto
expoente de um órgão de soberania --- o Supremo Tribunal de Justiça. De
Justiça, tem pelo menos o nome; se o merece ou não, que o diga gente como os
incontáveis desgraçados que se arrastam pelas ruas sobrevivendo do jeito que a
imagem mostra. Os outros tribunais não se afastam deste padrão, e consequentemente
transportam idêntico grau de responsabilidade que só admite gradação em função
da hierarquia de cada um.
Todos os deserdados da fortuna,
que tiveram de procurar leito em cima daquelas frias lajes, terão a sua
história. Naquele sítio e em tantos outros parecidos, onde o infortúnio se
repete. A causa desta miséria não será igual em todos, mas uma coisa é certa:
alguns quadros como este têm origem em decisões judiciais que por vezes não
passam de clamorosos erros de direito, e
que noutros casos, nada raros, foram ditadas por um propósito criminoso.
Contudo, pelos crimes previstos e punidos no artigo 369.º do Código Penal, não
se conhece nos anais judiciários uma única condenação!
Sei, por experiência própria, para
onde nos pode atirar o desconcerto dos tribunais. Trago no corpo e na alma,
cicatrizes profundas desse desvairo.
Por ora, os magistrados
denunciados pela prática dos crimes de prevaricação ou de denegação de justiça nada
sofreram, porque (assim considera quem os julga) agiram sem consciência de que procediam
contra a lei. É jurisprudência constante. Saber que a nossa fazenda, a nossa
liberdade ou a nossa honra estão nas mãos de inconscientes não é mais
tranquilizador do que se nos atirassem para um covil de malfeitores ou nos
deixassem nas garras afiadas de ferozes animais.
Na judicatura, a incompetência
pode até ser mais perigosa do que a malícia. Assim como não há santo que nunca
peque, também não se conhece malvado que não seja tocado por uns momentos de
bondade. Pelo que o julgamento levado a cabo por um magistrado imoral pode ser
justo, quando as partes tiveram a sorte de se cruzarem com ele numa das suas
horas de graça; em contrapartida, só um produto do acaso permitirá que de
magistrado inepto brote uma decisão recta.
Portanto, o mínimo que se espera
é um padrão de responsabilidade. Se alguém há desta casta de impecáveis que não
tenha consciência de que viola a lei, quando lavra despacho ou sentença em
manifesta contradição ao que estipula o direito, esse magistrado que se retire
ou demitam-no; e se age maldosamente, que seja punido conforme o estabelecido no
Código Penal. Com isto, só sairia reforçado o prestígio da Justiça.
Estando enferma toda a sociedade
portuguesa, o nexo causa – efeito deste morbo colectivo não se estabelece numa
única relação linear e com um só sentido: a acção é múltipla, complexa e
recíproca. Há contudo três cancros que nos roem de forma mais letal: a
Comunicação Social, canal bestificante; a Banca, fonte inesgotável de corrupção
e mistificação; vêm por fim os magistrados, esquecidos do espírito que anima a
nobilíssima função que são chamados a exercer. Por definição, os tribunais constituem
a garantia das liberdades consagradas na ordem jurídica. Desta maneira, são o
derradeiro paládio antes do recurso à força, solução indesejável, mas a que não
se consegue fugir quando um povo quer continuar o seu caminho.
O poder judicial é a jóia da
soberania e como tal devia luzir. Pedir que os tribunais brilhem, não é portanto
pedir demais. Infelizmente, eu entendo, pelas razões já invocadas, que eles se
transformaram nos principais culpados da anomia que alastra. E, claro, à sombra
dessa anomia vai crescendo a miséria de que é expressivo argumento o que o
Terreiro do Paço nos revela.
Dantes podíamos afirmar com fundamento: há
magistrados que não dignificam a beca que envergam; hoje, a honestidade impõe
que se diga: há magistrados que são íntegros. A diferença é só uma, mas imensa
como a distância que vai da honradez à venalidade!
Joaquim Maria Cymbron
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