Este texto saiu igualmente publicado no meu outro blogue. A explicação para o facto vem lá enunciada.
Duas palavras, dois conceitos e muita confusão à volta
deles. Muitos pretendem identificar um termo com o outro. Andam mal. Por
conseguinte, erra quem disser que os Tribunais administram Justiça em toda a
extensão deste vocábulo e na sua acepção íntegra; e erra, porque comummente o
que fazem é ditar o Direito. Quando isto ocorre já nem tudo é mau, porque vezes
há em que aqueles órgãos de soberania viram as leis do avesso e, não contentes
com a façanha, não se ficam por aqui: vão mais longe, o que bem se
nota quando soltam aos quatro ventos a notícia de ser Direito o que não passa
de um grosseiro simulacro. Não será, no entanto, esta adulteração que porá
estorvo à divisória entre Justiça e Direito, na sua linha teorética.
Porquê esta delimitação?
A primeira das palavras, que servem de cabeçalho, é de definição mais que difícil, porque, em estrito rigor, é de definição impossível. Com efeito, Justiça é um dos atributos divinos; como tal está repleta de um valor absoluto; e, portanto, nada mais que isto se pode afirmar dela. Sabemos que é um ideal a perseguir, meta que o homem nunca atingirá na sua plenitude. Por conseguinte, também as sentenças dos Tribunais só parcialmente poderão dar-nos uns vislumbres de Justiça. E até isto requer um corpo de magistrados isentos e sabedores, o que, infelizmente e pelo que toca a Portugal, é cada vez mais raro contemplar.
Quanto ao Direito, apenas é lícito conceder que se trata de um veículo de
realização tendencial de Justiça, precisamente aquela que está ao alcance dos
Tribunais. Como se vê, é distinto. Desde logo e sem curar da diferença de
essência, que é profunda, ao Direito e à Justiça separa-os a distância que vai
do meio para o fim: o Direito é, pois, um bem instrumental ao serviço de um
valor perene. A diferença de natureza, na relação que estes termos mantêm, já
marca muito. Nem essa diferença se desfaz, mesmo que uma aturada busca de
Justiça anime o Direito: por mais louvável que isso seja, a verdade é que, para
o efeito aqui tratado, tal busca não apaga a fronteira conceptual que tem o
Direito a um lado e, do outro, a Justiça. De facto, não a anula, nem sequer a
atenua no plano especulativo, acabando antes por salientá-la ainda mais.
Neste enunciado da sua pureza abstracta, parece irrefutável que a falta de
conformidade entre os dois conceitos já é bem visível. Contudo, se continuarmos
a desenhar o confronto, depressa se verá como essa disparidade se há-de tornar
ainda mais sensível.
Vale a pena fazê-lo:
Se Justiça e Direito tivessem igual identidade, teríamos formalmente duas
conclusões opostas como possíveis: ou entendíamos que a Justiça mudava de face,
ao sabor das reformas jurídicas; ou era força aceitar que o justo encontra
plena consagração na lei, se não preferíssemos sustentar que o legislador
é justo, o que vem a dar no mesmo. Ora um mero exercício de análise, a par da
realidade dos factos, mostram como estão desmentidas ambas
soluções. Com efeito, a ideia de ser o Direito expressão acabada da
Justiça, não é de admitir porque então cabia perguntar para que se muda a lei
se ela é justa. E assim é que, enquanto a Justiça permanece, os sistemas de
Direito sucedem-se no tempo e no espaço, significando isto que a sua
transitoriedade é prova de como ele não passa de um bem imperfeito. De modo
que, como acima já se aflorou, se esta visão fosse correcta, teríamos que a
cada ordenamento jurídico, no tempo ou no espaço, corresponderia uma Justiça
distinta. Completo absurdo! Sabe-se que até os mais agnósticos e os maiores
agitadores proclamam e aceitam a existência de princípios de Direito, que se
impõem como sendo de observância para todos e desde sempre. Essas regras
pretendem fazer Justiça e, por este modo, saciar a sede que todos temos desse
bem, que é superior ao Direito porque se situa na esfera de tudo o que
constitui o fim supremo do homem. Nesse caso, os princípios de Direito, a serem
respeitados por todos, espelhariam uma imagem de Justiça. Mas todos sabemos que
essas leis encerram um núcleo de valores muito restrito que, de modo algum,
comportam generalização. Apesar disto, porque no conteúdo destes princípios
existe consonância entre o que o Direito defende e o que se afigura justo no
âmbito assim delimitado, não há inconveniente em assimilar os dois conceitos,
cuja antítese vem sendo estabelecida. A expressão verbal dos imperativos
categóricos, ali formulados, é clara emanação da mais incontroversa e
incontrovertida Justiça, com ela mantendo uma correspondência total, que
ninguém ousou contestar até à data.
Ficou dito que ao Direito falta a característica de bem necessário que é
atributo da Justiça. Esta é um valor que transcende o que é finito e
contingente. Tem natureza de uma absoluta necessidade; o Direito é meramente
contingente. Por isso, o Direito finda e a Justiça sobrevive. Sendo o Direito,
como já se assinalou, mero instrumento para um objectivo chamado Justiça,
quem quererá o meio se já alcançou o fim?
Não será demasiado temerário adiantar que uma das causas originantes da
balbúrdia que vai dentro dos nossos Tribunais, que uma delas, repita-se, está
no abandono da tradição jurídica portuguesa. Vai de moda a pandectística
germânica: o povo alemão deve merecer-nos subido respeito pelos valiosos
predicados que exibe nos múltiplos ramos do conhecimento, onde o da ciência do
Direito não é excepção. Porém, isto não exclui o apreço pelo que é património
nosso.
Se os nossos magistrados se ficassem pela sistematização da
matéria legislada, bem estaria porque é demais conhecida a inclinação pela
ordem que aquela gente tem, e o escrúpulo que nisso põe. No resto, é um
alarde de erudição entrajada numa roupagem de gosto bastante duvidoso e sem
qualquer cunho nacional. A velha Escola de Direito Peninsular foi marco
relevante do altíssimo expoente que, entre nós, atingiu o culto pelo Direito.
Sem nenhuma sombra de dúvida, esta Escola levantou uma das mais belas
construções que o mundo jurídico conheceu. Eram maioritariamente Espanhóis, mas
não temos por que nos envergonhar, visto que, no grémio daqueles Mestres,
elevam-se figuras como a de D. Jerónimo Osório ou a de Frei Serafim de Freitas,
nomes que atravessam os séculos e formarão sempre no meio das maiores glórias
da dogmática do Direito. A Escola, que também serviram, é motivo de lídimo
orgulho para estes autores de genuína cepa lusitana, e quem colheu
proveito dos seus ensinamentos terá sempre dificuldade em avaliar, na justa
medida, a intensidade do benefício recebido.
Porém, o esquecimento dos velhos estilos de uma
jurisprudência autenticamente portuguesa, ao mesmo tempo que se deixa de
parte a nossa doutrina, se não for até o desprezo por estas fontes de um
Direito com as fortes raízes que lançou no passado e mais conforme
ao nosso ser histórico, infelizmente nenhuma destas duas coisas é o pior dos
males presentes na vida dos Tribunais de Portugal. Sofrem de descaracterização.
Todavia, este aleijão não acontece só por debilidade dos protagonistas. É certo
que essa fraqueza existe. Mas nem tudo é fruto de um ou vários acidentes, nem
do acaso das circunstâncias: a degenerescência, que cresce dia a dia, obedece a
um escopo criminoso que não está tão bem escondido como pensam os seus fautores
--- é o claro projecto de derrube da ordem, não da estafada ordem democrática
que é via aberta para quaisquer excessos, solo ubérrimo de todo o tipo de
promiscuidade, triunfo garantido da iniquidade, enfim, cancro pavoroso que rói
o tecido social, aqui ou onde ela se firmar e crescer. Nem deverá ser a
derrocada da Democracia que nos há-de agoniar. Trata-se,
isso sim, do propósito de instalar uma ordem que soa a império da subversão,
porque tudo que se vem desenhando, no tabuleiro político do nosso desgraçado
País, é um atroador grito de revolta contra a Lei Divina. E esta Lei é a ordem
válida, a única com legitimidade suficiente para exigir o acatamento que lhe é
devido por obrigação natural de todos os homens, vivam eles em
Portugal ou nos antípodas!
Mas não pára aqui a fúria destruidora dos esteios de uma ordem escorreita nos
domínios do poder judical. Facilmente se compreende. Deitados por terra os
Tribunais, é profundo o abalo de todo o edifício político de um povo. Passam os
regimes e outras são as estruturas, bem como a composição dos órgãos de
soberania. De todos? --- Não, porque um há que foge à regra! Os Tribunais podem
ter novos guiões, se há lei nova, mas as suas faces visíveis não mudam. Quer
dizer: neles, algo perdura. É precisamente deste elemento de continuidade que
eles tiram a sua força e, por isso, são actualmente o alvo político mais
apetecido da Revolução Universal. Portugal oferece um quadro que é um bom
paradigma dessa estratégia demolidora.
Senão, vejamos:
Erguem-se vozes estultas bradando que o Direito não é uma ciência exacta.
Rotundamente falso! Ignorância nalguns; e muito cómodo para outros, que assim
têm porta franca para os seus caprichos e para os seus excessos. O arbítrio
já campeia mais do que a conta moralmente aceitável: se a mistificação alastra,
será a apoteose do delírio.
Tamanho dislate permite que o combatamos com uma demonstração ad absurdum. Mas o bom senso manda percorrer outra via:
O Direito é, obviamente, uma ciência exacta sob pena de não ser ciência no
sentido real da palavra. A persistir no desconchavo de o considerar como
ciência não-exacta, o caminho a tomar seria de pregar com ele para o rol de
algumas práticas autodenominadas como ciências, mas que têm, ao menos, a
honestidade de temperar este abuso acrescentando ao nome de ciências o
qualificativo ocultas. Sempre na suposta validade do que bem parece
ir além de um primaríssimo erro de análise, porque nalguns toca as raias de uma
mentira colossal, não restaria outra alternativa do que pespegar com
o Direito para o meio dos mais celebrados compêndios de charlatanaria.
Em linguagem clara, cabe dizer que o Direito não tem a pretensão de ser uma
ciência com o grau de precisão que outras ciências revelam, nem possui a
evidência que estas oferecem aos olhos dos que as estudam e, até, dos que
meramente experimentam os efeitos enunciados nas suas normas. Mas esta nota de
menor perfeição relativa, que o distingue das ciências experimentais como são
as ciências da Natureza, e que, em plano bem superior, surge como contraste que
deixa a nu especialmente quanto o Direito se afasta da Matemática, essa nota,
insista-se, não lhe rouba dignidade científica.
Só mentes completamente transtornadas pela malícia ou alheadas dos mais
elementares processos dialécticos são capazes de negar ao Direito a estrutura
de ciência exacta, que ele possui. A norma jurídica repousa numa base, cuja
aplicação conduz a um resultado bem definido. Este processo lógico tem um
notório corte silogístico, e sabe-se como o silogismo está dotado
de peculiar firmeza --- a Verdade nele contida é
insusceptível de levar volta porque o silogismo não a descobre, apenas a expõe
com o máximo rigor de que a mente humana é capaz.
Se o Direito não fora uma ciência exacta, qual a finalidade do recurso
processual? Quem recorre, fá-lo porque não se conformou com uma decisão. E que
pede o recorrente? --- A revogação do decidido! Mas esta pretensão que sentido
tem se não se reconhece exactidão à ciência do Direito? --- Teimar que o
Direito não tem lugar entre as ciências exactas porque está privado
do determinismo na dose necessária para torná-lo digno de enfileirar entre
aquelas, não só é reduzi-lo à rasteira condição de charlatanismo, como já foi
referido, porque também é colocar os Tribunais em pé de
igualdade com uma vulgar barraca de feira, onde se rifam sentenças.
E o melhor será, então, que cada um reúna um bom pecúlio para, com ele, acenar
ao feirante e esperar que um novo Mercúrio ou fados misteriosos lhe dêem o que
almeja.
Decisões, que violam o Direito logo à partida, não são segredo para ninguém;
por outro lado, não se desconhece que, de entre essas, as impugnadas em
recurso, sofrem frequentemente censura imerecida; e que, muitas vezes, tanto se
erra abaixo como acima. Acaso reside nesta volubilidade de julgados o
motivo pelo qual se recusa ao Direito a qualidade de ciência exacta? Será que a
versatilidade das sentenças provenientes dos Tribunais legitima juízo tão
desastrado?
Salta à vista que o desencontro de decisões judiciais já autoriza a concluir
que, pelo menos, umas não serão nem rectas nem prudentes porque,
se ocorre oposição entre elas, resulta imposível que sejam todas
reflexo fiel da lei. E, por cima disto, o juízo de reprovação que suscitarem
terá sempre de assentar numa apreciação suprapositiva, que há-de situar-se
junto a um padrão de valores transcendentes, aquele que obrigou os Romanos,
numa sabedoria edificante, a chamar ars boni et aequi 1 à
nobre ciência do Direito. Ars boni et aequi, eis o mote que é
legado daqueles povos do Lácio e que não se compreenderia, se nele não se visse
a clara alusão a um foco de luz imorredoira, que tudo aquece e ilumina, bem
ideal, como já acima se disse, e que dá pelo nome de Justiça.
A realidade jurídica desenvolve-se a partir de normas bem ordenadas, obedecendo
a uma sistematização de experiência multissecular e com um objecto
perfeitamente definido. Não se manifesta, contudo, numa sucessão de processos
mecânicos: ela arranca do homem para o homem e, daí, o
seu intenso drama. Ao dizer drama, quer-se, com esta palavra,
assumir o significado que já o latim foi buscar ao grego: acção, uma acção,
acrescente-se, que pode acabar em tragédia, não por culpa do Direito, mas
apesar dele. E é isto que faz o seu enorme encanto: certamente que o Direito
não deixa de ser uma pérola de alta cotação só porque espíritos broncos ou
maus, ignorantes do valor que as suas rudes mãos seguram, o tratam como artigo
de fancaria, quando não o atiram à fossa mais próxima que o caminho trilhado
lhes proporciona. Desta profanação do Direito, são os Magistrados que se situam
na primeiríssima linha dos responsáveis. Coisa singular, ou não será?
Convém distinguir dois tempos na lei: a lei publicada; e a lei aplicada. No primeiro tempo, a lei é, ou devia ser, um foco a alumiar os seus destinatários. Tem, pois, uma função pedagógica: mostra os terrenos que pisamos e, neles, indica-nos o caminho a tomar. No tempo seguinte, a lei corrige os aleijões resultantes da sua violação. Eis a altura em que se espera da lei que se revele na plenitude da sua força. É verdade que apenas pode aplicar-se o que dispõe a lei, mas aqui a lei aplicada já é acto, enquanto antes é mera potência. E quem traz a lei passiva da inércia dos códigos à actualidade palpitante da vida quotidiana? --- São os Magistrados! É quando eles se mostram réus do mal que semeiam, como seriam dignos de uma aura radiosa se outro fora o seu proceder.
Na ciência do Direito, é parte determinante a vontade humana. Porém, mais,
muito mais do que no autor da lei, a intervenção da vontade está patente na
função judicante. É precisamente na discrepância vivida nestes dois momentos
--- a feitura da lei e a sua aplicação --- que se verifica o desatino do
repúdio pelo Direito como ciência exacta. Aproveitar a incerteza que a
actividade jurisdicional nos traz, umas vezes por lapso e noutras com mera
culpa ou intenção deliberada, utilizar essa imprevisibilidade, repise-se, para
negar ao Direito o carácter de ciência, por inteiro, não é seguramente um
despropósito de proporções menores do que poderiam ter os que
procurassem apoucar a Física, depois que a teoria dos quanta veio
mostrar a disteleologia daquele ramo do saber. A esta posição, tanto como
despropósito, poderíamos chamar-lhe risível. E o que se diz da Física,
igualmente seria lícito afirmar de qualquer outra ciência, só pelo facto de
nenhuma, no âmbito do seu objecto, ter elaborado um sistema definitivo.
Não foi por casualidade que atrás se falou na Escola do Direito Peninsular. A
sua trave-mestra era o objectivismo, contrário ao relativismo subjectivista que
já se vinha instalando e, progressivamente, ia contaminando as mentes. Este
vício do pensamento é que impede o observador atento, por mais escrupuloso que
seja, de ver a causa profunda do que há de ignoto no horizonte tanto das
Ciências Físicas como do Direito, um aliquid desconhecido que
jamais findará. O erro descomunal deste desvairo filosófico está em crer que é
possível ao homem tornar-se criador da Verdade, e de que não há nas
coisas outra Verdade do que aquela que ele próprio lá coloca.
Arvorado o sujeito cognoscente em norma da Verdade, conseguiu-se a
inversão total do que dispõe uma sã gnoseologia, a qual nos manda buscá-la
naquilo que é objecto do nosso conhecimento, em lugar de a plasmar nuns
moldes que a nossa razão gerou. Na raiz deste desvio criteriológico,
adivinha-se o legado fatal de Kant. A cisão que, desde a escola do filósofo de
Königsberg, se vem operando no Ser, foi o remover da barreira que
tolhia o avanço à arbitrariedade no campo da Moral e da Liberdade, para não
falar de outros valores outrora acatados e seguidos pelo homem no convívio que
o ligava ao seu semelhante. Como era inevitável, as consequências
perniciosas deste corte, imediatamente se fizeram sentir no foro jurídico. Tudo
estremeceu, no Direito e fora dele, e deste cataclismo ainda o homem não se
recompôs, nem parece que o venha a lograr enquanto teimar no rumo traçado.
Se nisto assentarmos, e sinceramente não se vê meio de contraditá-lo,
facilmente se há-de concluir que o Direito só não é uma ciência exacta para
aqueles que se decidem pela subjectividade feudatária do relativismo, porque
nesses é aquilo que cada um quer e como quer, hoje, amanhã e depois. Enganam-se
redondamente: a Verdade está na coisa e essa é imutável; o que
varia é a apreensão que dela temos. Esta diferença é suficiente para vincar a
distância que separa o relativismo do objectivismo. Em contrapartida, os que
alinham sob a bandeira do objectivismo, estão cientes de que na procura
da Verdade, inteligível de iure conquanto de
facto sobre sempre algo que não se chega a tocar, o tal aliquid desconhecido
ao qual se aludiu há pouco. E, nessa procura, não estamos impedidos
de obter certezas legítimas. Ora estas certezas também vivem no mundo do
Direito, conferindo-lhe deste modo categoria de ciência exacta.
Neste duelo entre relativismo e objectivismo, importa ainda sublinhar o que
invocam os defensores do relativismo. A reserva, que opõem ao objectivismo,
funda-se numa argumentação que, a não ser produto de um distúrbio mental, é
então uma posição ditada por má fé. Com efeito, quando apontam para a
irrefutável oscilação das teses científicas, calam o mais elementar:
Por mais que o nosso conhecimento se estenda, como já ficou dito há ainda
muitos outros segredos escondidos que o espírito humano, na sua avidez de
saber, pressente e corre a desvendá-los. A estas descobertas, outros arcanos
sucederão até que o homem, alcançado o seu fim sobrenatural --- a visão
beatífica de Deus ---, vem a achar-se saciado. Portanto, a já referida
instabilidade da dogmática científica, por um lado, nada prova a favor do
relativismo, nem destrói, pelo outro, o que há de consistente no objectivismo.
Sendo que isto tanto se vive no mundo físico como no Direito ou em qualquer
outra parcela da vasta área do saber humano, tira-se daqui a inilidível certeza
da aptidão do homem para participar no conhecimento da obra da Criação com todas
as leis que a regem. Participar, só; mas não abarcar!
Participar no conhecimento do Ser, como já se deixou entender, não
é o mesmo que arrogar-se a autoria do que foi criado. A plenitude da Verdade,
que as coisas encerram, está com o seu obreiro. Mas excluída a vocação do homem
à bem-aventurança eterna, não há grandeza mais elevada que esta sua capacidade
para penetrar nas esferas sublimes da sabedoria, seja ela especulativa ou
prática. A pugna entre a autonomia do homem diante de um conjunto de valores, onde
se manifesta uma matriz kantiana, contra a qual se levanta a heteronomia
propugnada pela filosofia cristã, tem por desfecho este antagonismo
insusceptível de conciliação, enquanto se mostrar irredutível a pertinácia de
quem labora em erro. Pouco ou muito que isto desgoste as mentalidades
modernas, a ortodoxia do pensamento não pode ceder diante do que é falso. Em
tempo algum! Em nenhuma circunstância! Talvez desapareçam civilizações e
culturas inteiras; cidades e impérios poderão cair; da matéria, mais ainda
ruirá; mas o que é espiritual há-de resistir e dele será o triunfo final!
Antes de terminar convém ainda que, por uns curtos instantes, nos debrucemos
sobre um aspecto impossível de não cuidar:
A organização judiciária reclama uma distinção no seio da Magistratura: Juízes
e Procuradores. Restringida a análise aos primeiros, é hora de dizer que não
há-de ser o Juiz um mero aspirante ao poder. E o poder de que vierem a
investi-lo, não deve tomar outra natureza que não seja a de uma arma com uma
única missão --- desempenho de um sacerdócio! A Judicatura, pois, pressupõe
dignidade e essa dignidade não está ao alcance de todos. Os que a exercem,
formam um dos corpos mais aristocráticos que são conhecidos, e a pirâmide, em
que se estrutura, dá-lhe uma hierarquia muito própria. Goza de total
independência: alheio ao irresponsável sufrágio das urnas, intocável por quem
governa, cada Juiz é rei e senhor dentro do seu Tribunal. Não monta o grau em
que aquele se situa: da base ao vértice da pirâmide ou em sentido inverso, cada
Tribunal é couto dos Juízes seus titulares. Escalonamento tão definido não
o possui, em Portugal, nenhum outro órgão de soberania, nem creio que o haja
numa qualquer outra sociedade, mesmo naquelas cujos pilares tenham a estulta
veleidade de se firmar sobre as areias movediças da Democracia!
Entre nós, no plano temporal, apenas a instituição militar é hoje capaz de
revelar uma estrutura interna tão robusta e tão invulnerável como a que suporta
o corpo dos nossos Magistrados Judiciais. Mas até as Forças Armadas, antano tão
ciosas da autonomia que a dimensão de um quase-Estado dentro do próprio Estado
lhes dispensava, já não conseguem ufanar-se por deter a mesma força de que
gozam os Juízes e, principalmente, uma independência igual.
Esta força e esta independência não têm de assustar: ponto é que os Juízes
façam um recto uso delas. Por tudo isto é que a querela à volta do Direito como
causa instrumental da Justiça, não se resume a um problema de fria metodologia,
porque é simultaneamente uma questão moral. Essa questão tem a ver com a
formação cívica dos Magistrados mais implicados na administração da Justiça,
aqueles que, nessa função, têm a palavra resolutória --- os Juízes! E a tarefa
de incutir aos Juízes um sentido de honra e de integridade, deve ser a
principal preocupação de todos. Em especial dos que já sentiram os arrasadores
efeitos dos desmandos que provêm da viciosa falta daquelas noções, mormente
quando se faz notar a ausência quase absoluta de isenção.
Nos dias que correm, a sociedade humana, toda ela, está atacada de uma doença
que pode ser letal: padece do que é, talvez, a maior crise de inteligência
rectamente ordenada, que alguma vez a tenha afligido. O eixo de valores, ao
qual se arrimaram os nossos maiores, foi primeiramente deslocado; acelerou-se
uma crise de pensamento, já latente e da qual derivou o vazio moral; e, deste,
depressa se resvalou para a desolação do cepticismo e do desencanto por tudo
que é portador de uma semente de vida. De um pólo ao outro da Terra, ouve-se um
grito necrófilo. Parece que a vida cede o seu lugar à morte. Ora isto deve
repugnar, principalmente àqueles que tiveram a graça de nascer numa civilização
que floriu na Fé da vitória sobre a morte!
Desta decadência não escapam muitos Juízes, como repetidamente se vem
denunciando, explícita ou implicitamente, ao longo do tema central aqui
abordado. Por culpa própria ou alheia, o que não interessa agora apurar,
porque, neste passo, apenas se aprecia o tristíssimo enquadramento onde eles
desvirtuam a sua missão de uma forma ou de outra. Esses Juízes, frise-se de
novo, rubricaram e continuam a rubricar uma certidão de falta de
idoneidade para o exercício de tão excelso quanto espinhoso é o cargo que não
merecem desempenhar. Ainda que, porventura, não seja esta degradação a de maior
intensidade de todas que afligem a vida nacional, ela é, por certo, a mais
inquietante porque os seus efeitos repercutem ampla e profundamente em
todos os sectores da comunidade. E o índice de culpa do seu mau comportamento,
quando aquela manifestamente lhes cabe, é o mais elevado, para lá de toda a
dúvida, porque a função que cumprem é, também, a mais proeminente na vida
temporal de qualquer sociedade civilizada.
Apesar de tantos sinais desanimadores, a esperança numa Justiça mais conforme à pureza do seu ideal não está morta. Ela refugia-se na certeza de que ninguém abomina uma equitativa aplicação do Direito: pelo contrário, todos apetecemos uma ordem com essa particular fisionomia. Se, na verdade, ambicionamos atingir este fim, urge iniciar uma reforma de mentalidades. E nunca será demais lembrar que pode ser enorme a diferença que vai do uso de uma beca ao carácter daquele que a veste. De facto, nem sempre há correspondência entre o hábito externo e a personalidade de quem por ele é coberto. Em estilo mais prosaico: não tem igual sabor falar de um Sr. Juiz, ou de um Juiz, que é um senhor. Este desajuste traduz a origem e a explicação de muitos males!
Joaquim Maria Cymbron
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1. D. 1, 1, 1 pr.
JMC
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